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Revista Luz & Cena
Neste espaço, Enrico De Paoli fala de suas experiências e histórias em engenharia de música, estúdios e shows.
Fala também do mercado musical e fonográfico e de suas tecnologias.
LUGAR DA VERDADE
Postado por Enrico de Paoli em 29/02/2008 - 14h57
Há alguns longos e rápidos anos, tenho tido a honra de fechar as edições da M&T. O Lugar da Verdade, ao contrário do que pode parecer, não sugere que tudo dito aqui seja o certo. Este nome foi escolhido enquanto eu lia um livro de história egípcia, do escritor francês Christian Jacq. O livro contava sobre um povoado onde apenas 32 dos artesãos mais prendados e apaixonados por pintura eram escolhidos para decorarem as eternas tumbas dos faraós.

Para ser um artesão neste povoado, não existia uma regra específica. Eles diziam que em dado momento, o verdadeiro artesão sentia que era sua vez, e recebia um "chamado". Isso acontecia quando a paixão pelo perfeccionismo e autocrítica se tornavam definitivamente embedados em suas vidas.

Não existia salário. Em compensação, nada faltava a eles. Eram recompensados com uma vida farta, segura e completa. Digo completa justamente porque eles não tinham um emprego. Tinham um sonho em andamento. Tinham suas artes eternizadas e reconhecidas, em primeiro lugar pelos próprios, e imagino eu que quem lê esta revista, e chega até esta página, sabe bem do que estou falando. O nome desse povoado era Lugar da Verdade.

Nestes longos anos, aqui falamos de muitos assuntos. Alguns técnicos, outros mercadológicos, alguns românticos e vários sem uma classificação específica, simplesmente como se estivéssemos batendo papo numa mesa de bar (ou no hall de um estúdio).

Neste mês me aconteceu uma infeliz falta de assunto. Como um primeiro encontro que dá errado... Um olha pra o outro e, por incrível que pareça, não é possível que nada venha em mente pra ser conversado. De repente me ocorreu uma sensação inversa (não no tal primeiro encontro.. foi só um exemplo!): como é curioso a gente normalmente ter tanto pra falar, de um assunto invisível e não palpável! Muitas vezes não estamos nem falando de música, mas de timbre, de som. Textura? Cor? Peso? Onde vocês tão vendo que o som é nervoso? Doce? Francamente!

Dá pra ir mais fundo (ou mais longe, depende do referencial!) nesse monte de absurdos. Já notaram que as orelhas de todo mundo são radicalmente diferentes? Dito isso, convenhamos que é impossível saber como outra pessoa ouve. O que eu escuto é o mesmo que ela? Muito provavelmente não.

Não é possível que projetos de orelhas tão radicalmente diferentes resultem em timbres idênticos. E, dito isso, pra que exatamente ficamos noites em claro experimentando se o timbre do violão de uma música tá com, digamos, peso suficiente, sem deixar de ser doce? Ok, não estamos vendo no estúdio, mas ao menos estamos ouvindo. E aqui? Quando eu descrevo doce, é o mesmo doce que você ouve? Eu lá sei quanto de açúcar você põe no seu café!

Se vocês ainda estiverem aí compartilhando dessa verdadeira paranóia, dá pra ir um pouquinho mais. longe. Sabemos que o kit orelhas e ouvidos é apenas a ferramenta física de captação das ondas sonoras. Mas eles sozinhos não nos fazem ouvir nada. Esses transdutores precisam estar conectados a um processador. Nesse sistema, o chamamos de cérebro. Amigo, se as orelhas de cada um são diferentes, o que temos a dizer dos cérebros?

Mesmo cientes de que sabemos muito pouco sobre o tal funcionamento do cérebro perto de sua capacidade total, ainda assim, alguns seres (com seus cérebros ainda mais diferentes do que os nossos) conseguiram descobrir alguns processamentos que vieram de fábrica com a gente. Dois loucos-hiperdotados que podem ser citados são o alemão Helmut Haas e o americano Harvey Fletcher.

O conhecido Efeito Haas, também chamado de efeito da precedência, descreve como o cérebro reage quando ouve dois sons idênticos originados de duas fontes em distâncias diferentes do ouvinte. A fonte que chega primeiro, com até 30 ms de distância de tempo da segunda, será interpretada pelo cérebro como sendo mais alta em volume, mesmo que seja até 10dB mais baixa! Assim como os dois olhos servem para nos dar senso de profundidade, os dois ouvidos (em conjunto com o cérebro, claro) nos ajudam a identificar a exata posição da fonte sonora.

Naturalmente, essa matemática não vem dos ouvidos e sim dos plug-ins da nossa CPU instalada na fábrica: cérebro. O Efeito Fletcher descreve a sensação de as freqüências (afinação) baixarem quando o nível sonoro sobe significativamente. Uma grande variação de volume pode produzir a impressão de que a afinação baixou de meio tom.

Mais uma vez falamos de coisas absolutamente invisíveis e, quem sabe, não absolutas de ouvinte pra ouvinte. Teoricamente difíceis de visualizar, e curiosamente fáceis de entender pra quem é artesão do som. Bem-vindos, mais uma vez, ao Lugar da Verdade.

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Enrico De Paoli mixa e masteriza em seu Incrível Mundo Studio. Gravações in-loco sob consulta. Projetos recentes: Djavan e Glaucia Nasser. cartas@enricodepaoli.com
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