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Revista Luz & Cena
Entrevista
Bom de Estúdio e de Polêmica
Um dos Maiores Engenheiros de Som do Brasil, Marcelo Sabóia
André Luiz Mello e Sólon do Va
Publicado em 02/01/2002 - 00h00
Marcos Amorim
 (Marcos Amorim)
Longe de ser um saudosista de carteirinha, o engenheiro de som Marcelo Sabóia, 41 anos, gosta de relembrar a época em que fugia do colégio para acompanhar a movimentação no estúdio do pai, o organista Ed Lincoln. Lá, ele fez suas primeiras experiências sonoras, junto com o irmão Marcos, um ano mais novo, e decidiu que aquele seria o caminho. Há seis anos trabalhando nos AR Studios, é considerado um dos principais nomes no campo da gravação no país, fato confirmado pela conquista do Prêmio de Áudio de 2000 na categoria Profissional do Ano (estúdio) e pela indicação (com Moogie Canázio) ao Grammy Latino de 2001 como Melhor Gravação pelo disco Noites do Norte, de Caetano Veloso.
Outra boa evidência são os artistas com os quais trabalhou: Legião Urbana, Djavan, João Bosco, Cássia Eller, Simone, Fafá de Belém e os mais recentes trabalhos de Ney Matogrosso, Dori Caymmi, Emílio Santiago, Nana Caymmi, Ivete Sangalo, Gal Costa, Zizi Possi e Hebe Camargo (também opera o PA da apresentadora). Do pai, Sabóia herdou a educação musical, incluindo a teoria, que o permite acompanhar uma partitura durante a gravação. "Ele ouvia muito jazz em casa, só gente da pesada", comenta. Talvez, por isso, possa emitir opiniões polêmicas sobre a relação entre músicos e o sistema Pro Tools, a supremacia da cenografia em shows ao vivo e a necessidade de se impor perante o artista no estúdio.

"O IDEAL É TER LIBERDADE NA PARTE TÉCNICA, POIS NINGUÉM MELHOR DO QUE VOCÊ PARA SABER AONDE PODE CHEGAR"

Fale sobre o seu início na profissão.
Em 1973 eu comecei a fugir do Colégio Zacaria (localizado no bairro do Catete, no Rio) para a Lapa, na época ainda um estúdio de ensaio. Quem gravava era meu pai, e eu - tinha uns 14 anos - e meu irmão ficávamos como assistentes dele. A gente tinha tempo e fazia muitas experiências. Era um laboratório: gravávamos a bateria e tentávamos igualar ao som dos discos. Aprendi muito, ainda mais que ele montou e desmontou o estúdio umas três vezes, cansei de queimar dedo, de ligar fora de fase... Em 1975, meu pai foi para os Estados Unidos e ficou hospedado na residência do Sérgio Mendes, que já tinha um estúdio em casa. Ele comprou dois Revox: fazíamos a base e copiávamos para a outra máquina acrescentando alguma coisa a mais. Simulávamos o Dolby puxando uma alta e depois tirando aquela alta para passar para a outra máquina. Depois ele foi tocar na noite e deixou o estúdio comigo, gravamos muito evangélico e jingle. Quando vieram os home studios, o estúdio começou a cair.

 
Aos 16 anos

Você ainda pegou um bocado de equipamento valvulado.
Tinha muita válvula naquele tempo. Depois, fui trabalhar na Musidisc (na verdade este era o nome do selo. O estúdio chamava-se Hara), que era ao lado. Entrei como segundo engenheiro e fiquei uns quatro anos. Aprendi muita coisa com o Ari Perdigão.

Você chegou a operar o PA do Djavan...
Durante quatro anos. É legal fazer show, mas chega uma hora em que você fica de saco cheio. Com o Djavan você pega equipamento muito bom, mas também tem hora que vem cada coisa... e você fica tentando melhorar e não consegue de jeito nenhum... é muito ruim.

Como é adquirir experiência em estúdio e depois operar ao vivo?
Eu tive muita sorte porque encontrei o André Rossi, lá de Salvador, que fazia o monitor do Djavan. Ele me explicou tudo. O Pedruzzi (Carlos Roberto, engenheiro de som) me deu muita luz também. O pessoal de PA sabe trabalhar muito: acerta com a sala vazia e quando a sala enche tira essa freqüência aqui... Mas na parte de periféricos eles não têm a experiência do pessoal de estúdio. Eu me sobressaí mais nesse negócio de timbrar o eco. E monitor é uma tristeza, é trabalho para doido.

Mas você fazia PA.
Eu gravava o disco da Simone e ela estava sem técnico de monitor. Eu disse que não sabia fazer, mas ela insistiu. Tirei 4kHz e continuava a apitar, tirei 2kHz, fui tirando tudo... Aí o Marquinhos (Máximo, engenheiro de som da Mac Audio e do grupo Cidade Negra) me ajudou. Se não fosse ele, estava perdido. Ele alinhou tudo. Aí a Simone chegou no palco, aquela tensão. Ela falou: "está ótimo, excelente". Mas foi bom trabalhar com o Djavan. A banda era muito boa: o Bala (Carlos, baterista), Arthur Maia (baixo), Calazans (Paulo, teclado), Glauton (Campelo, teclado), Marcelo (Martins, sax), Torcuato (Mariano, guitarra), Pirulito (percussão). Era som bom, música boa e lugares legais. A não ser quando a gente ia para a Europa, era aquele barraco, uma confusão... Você chegava no local do show, não tinha nem sound check e o apresentador já ia anunciando: "Agora, Djavan". E a gente descendo do ônibus, eu ia correndo para o PA. Tanto que a gente tinha até uma estratégia: levantava teclado, o Djavan ia cantando, chegando a voz, aí entrava o baixo, a bateria...



Qual artista te surpreendeu mais em estúdio? Pela postura musical, pela inteligência, pela educação, por dar abertura para a sua opinião. O Ed Motta, talvez?
Não, o Ed Motta nem tanto, porque ele busca um negócio que já fizeram, o mal dele é que sempre tem uma referência. Ele é um talento monstruoso em tudo, mas tenta buscar uma coisa que já aconteceu ao invés de fazer uma coisa nova. O Djavan (Novena, Coisa de Acender) é um laboratório. Gostei muito de trabalhar com o Caetano (em Noites do Norte). Com a Cássia (Com Você Meu Mundo Ficaria Completo) foi muito bom também. Fica bom quando a pessoa confia em você. Cada um tem uma função: o produtor, o técnico, o artista, o músico... O ideal é ter a liberdade na parte técnica para fazer um trabalho. Porque ninguém melhor do que você que está gravando para saber aonde pode chegar.


"O que a Maria Bethânia disse é um absurdo... E se o técnico falar mal dela, estará desempregado no dia seguinte"

O que é respeitar o seu trabalho?
É deixar que eu trabalhe com equalizações, reverb, delay... e organizar até o que fazer primeiro e o que fazer depois, que é um trabalho de produção. "Não é melhor a gente gravar a harmonia para poder cantar em cima dela, do que gravar só a bateria? Depois vai ter que gravar a voz de novo". E a mixagem é a parte fundamental de um trabalho: você pode salvar uma merda ou pode cagar uma coisa que está boa. É onde o técnico se mostra mais técnico, é onde ele se apresenta mais.

A gravação é um registro, é algo mais linear.
O registro é o músico, tem que captar o melhor som dele. A mixagem é a hora em que você vai colocar ou até tirar o músico, pois ele pode estar atrapalhando. Agora, tem produtor que chega e diz: "pedal, caixa...", ele não deixa você trabalhar. A mixagem não vai ser sua. Se o produtor não gostou de nada, ele tem que mudar de técnico. Isso já aconteceu comigo num projeto para a Universal. Mas a mixagem em si é onde o técnico faz a festa, não tem como. A gravação independe do técnico, mas é lógico: tem que colocar o microfone certo na posição certa, mas se o pessoal não tocar direito...

Você acha que o próprio artista já respeita e valoriza o trabalho do engenheiro de som, ou para ele simplesmente é uma pessoa que "aperta os botões"?
Valoriza bastante. O pessoal que trabalhava na PolyGram, na Odeon, na Transamérica - eram os grandes técnicos, eu nem fazia parte -, não era tão unido como agora. Por isso o artista não dava tanto respaldo, cada um puxava de um lado.

De 20, 30 anos para cá o caráter das pessoas melhorou bastante.
Também. Naquela época era tudo carta na manga, ninguém queria mostrar nada para ninguém. Lá fora cresce porquê? Você chega numa palestra do Bruce Swedien, do Phil Ramone e eles dizem "eu gravo a voz do Frank Sinatra assim". Esconder o quê? Para quê?

Há um pouco de mito nisso, ou os caras são bons mesmo?
São bons, um know-how muito grande. Hoje (no Brasil) está bem melhor. Certa vez um produtor me perguntou se eu estava bem para mixar naquele dia.

Seria impossível ouvir essa frase há 20 anos.
Eu já fiz disco em que gravava a base, colocava a voz e mixava no mesmo dia. Não tinha tempo para nada. Hoje o artista escolhe o técnico. Naquele tempo não tinha isso, os técnicos eram empregados dos estúdios das gravadoras. Eu ainda trabalhava na Musidisc e fui fazer uma gravação na Som Livre. Não podia mexer nos canais da bateria, porque "já estavam passados". Eu disse: "mas é outro baterista". E o técnico: "não, mas a bateria é a mesma". Eu li a matéria sobre a Maria Bethânia na Música & Tecnologia (nº 121/ outubro de 2001, a intérprete criticou os técnicos de som. "Acho que deviam botar o técnico de som lá na frente do maestro, porque agora ele é a estrela. É responsabilidade de Deus!", disse), aquilo ali é um absurdo... Hoje ainda tem esse negócio que, se falar mal da artista, não pode mais trabalhar com ela. Se o técnico fala "essa mulher é louca", está desempregado no dia seguinte. Ele é que tinha que botar um processo nela. Ela pensa que está em que trono para falar uma coisa dessas?

"AS PESSOAS RECLAMAM DO MOOGIE, MAS ELE É MUITO BOM E CONSEGUE O QUE QUER"

Como você está vendo a chegada do surround?
Eu acho ótimo. Temos que aprender a fazer primeiro. O surround na mixagem de um disco ao vivo depende de onde você vai ficar na platéia. O problema nem é o canal do centro e, sim, de onde você vai ficar para ver o show.

O disco do Santana (Supernatural), ao vivo, tem coisas absurdas. Há instrumentos de percussão tocando atrás, aí você olha e não tem ninguém tocando atrás. (risos) O que diz a respeito?
Isso para mim é circo. Você pode fazer um circo desses num disco gravado em estúdio, num DVD-Áudio. Mas num show, você vendo uma imagem, não pode acontecer isso. Primeiro tem que saber aonde você vai ficar: no gargarejo, no meio, atrás...

...Mas dentro do palco certamente não. Você comentava que antigamente não havia muito problema em se fazer overdubs numa gravação ao vivo porque quase nunca havia um subproduto em cinema ou vídeo. Mas atualmente qualquer CD ao vivo vira DVD, está muito amarrado à imagem.
Hoje em dia não dá para fazer uma gravação ao vivo com qualidade para valer tudo, porque se você quiser colocar um acrílico na bateria para deter o vazamento, o diretor de cena vai falar que reflete a luz... A gente está vendendo som e não imagem. E quando você exige alguma coisa, dizem: "esse cara é muito chato". As pessoas reclamam do Moogie, mas ele é muito bom e consegue o que quer. Porque, no final, se der uma merda, o nome dele é que vai estar lá, mas ninguém está nem aí para isso.

Como lidar com um grande artista no estúdio?
Se você não impuser seu espaço, nunca vai conseguir nada. Tem que chegar e falar: "eu sou o responsável pelo som do seu disco". Aí ele vai perceber que você está realmente preocupado com o resultado sonoro.


"Os técnicos novos parecem 'filhos' de Arto Lindsay: aprendem que o bom é a distorção e não sabem gravar um violão limpo"

Você acha que a autocrítica é perigosa?
É perigosa, infinita. Quando o cara (artista) leva para ele, vai querer fazer o melhor, e o melhor dele pode ser infinito, pode não acabar. O disco pode demorar um ano. Tem que ter alguém para falar: "tá bom, excelente, não vai render mais". Se deixar o artista tomar conta do orçamento, vai estourar sempre. Marcaram uma gravação aqui numa época de carnaval. O produtor, que era um artista, não ligou para a gravadora para desmarcar o estúdio. Foram três dias de carnaval sem ninguém aparecer, vim para cá de fantasia e tudo...

Era fantasia de palhaço?
Quase. Eu costumo dizer que a minha grande vantagem em relação a outros técnicos, é que eu convivi com um artista em casa desde que nasci, eu sei o que posso falar e quando falar. Dizem que a Simone é chata, mas nunca tive problema com ela. A própria Maria Bethânia veio gravar uma participação no disco do Dori e foi tranqüilo.

Com quais produtores você gostou de trabalhar?
O Nando Reis, o Mazzola, o Zé Milton. Para mim existem três tipos de produtor: o ex-técnico, o ex-músico e o ex-artista. O pior é o que foi artista; pensa que sabe mais do que o cara que está cantando. Uma coisa interessante: o Nando Reis me disse que os músicos de estúdio pensam que é só colocar a cifra na frente e sair tocando, mas que nos Titãs eles trabalham célula por célula, eu nunca tinha visto essa concepção de produzir. Eu adoraria trabalhar com o Liminha. O Guto Graça Melo é excelente também.

E os engenheiros de estúdio?
O Enrico (De Paoli) é muito bom, o Guilherme Reis, o Moogie (Canázio), o Eduardo Costa, que está aqui com a gente agora, o Vítor Farias, o Márcio Gama, o pessoal da Companhia dos Técnicos, ninguém grava samba melhor que eles. Dos novos eu fico preocupado com esse negócio de Pro Tools, do cara aprender que bom é a distorção e não saber gravar um violão limpo. Alguns pensam que basta fazer curso de computação para ser técnico de gravação. É melhor fazer um curso de acústica ou até de música. Esse pessoal está muito "filho de Arto Lindsay". Tem que saber como é que grava uma guitarra com amplificador limpinho para depois meter uma distorção ou um eco.

"VOU AGÜENTAR AS NS-10 (YAMAHA) PELO RESTO DA VIDA"

O que acha do Pro Tools?
Todo mundo tem um Pro Tools, mas isso acaba com a qualidade musical do disco. Não é só com o pessoal novo. Quando era direto para a cera o cara tinha que tocar. Tinha que estudar, senão não era músico. Poucos músicos vão para casa estudar durante seis horas. Tem o (baterista) Carlos Bala... pouquíssimos...

E por um acaso estes são muito bons...
É, são os melhores. E com uma máquina dessas o cara pode chegar perto de um Bala, chegar perto de um Jurim (Moreira, baterista), de um Jamil (Joanes, baixo).

O bonito era gravar bem...
Gravar de uma vez... A Gal Costa gravou dois canais e foi embora. "Depois vocês ajeitam na maquinazinha...". Não pode ser assim. Emenda um solo. Pô, um solo é um solo. "Pega daqui, bota essa nota para cá e pega esse segundo solo e traz para cá...". Então vamos dividir o cachê do solo. É como no ao vivo: refaz voz, instrumento. Tudo bem se for para refazer por questões técnicas: vazou, deu um ruído ou não estava afinado. E se você tem um projeto de R$ 450 mil e trava um HD desses? Pois você quer fazer backup e o cliente fala: "a gente não pode fazer backup agora porque o tempo está estourando e o artista tem que viajar para Los Angeles amanhã". Mas tem que fazer o backup. "Faz amanhã".
 

Amanhã pode ser 11 de setembro...
Eu acho um absurdo fazer isso tudo dentro de uma máquina dessas. E para armazenar? Na AES disseram que a única mídia que está provada que dura 40 anos é a fita. As gravadoras que querem arquivar, têm que arquivar o HD e o computador. Porque se amanhã entra um software novo, não vai rodar. É muito bom para afinar, para botar músico no tempo... Imagina o que os Beatles fariam se tivessem uma máquina dessas? Hoje você monta um estúdio com um Pro Tools, gasta dez vezes menos e cobra o preço que cobraria um estúdio desse aqui (AR).

Qual a sua primeira preocupação ao chegar num estúdio?
A monitoração é o principal. É muito ruim mudar de estúdio quando se é free lancer, cada lugar é um som diferente. Por isso eu aceitei ficar só no AR.

NS-10, você ainda agüenta?
Agüento e vou agüentar pelo resto da vida. É aquele negócio: o cara se acostuma com coisa boa e com coisa ruim. Em todo lugar tem NS-10 (monitor Yamaha).

Quais a sua console e microfones preferidos?
Gosto de gravar na Neve e de mixar na SSL. O segredo de uma mixagem é a arrumação, você saber onde está tudo, e a SSL organiza muito bem as mixagens. Tenho usado o Sony G-800 C, para voz, gosto muito dos KMs Neumann, e o (AKG) C-414 eu uso em quase tudo.

O que mais chamou a sua atenção quando você entrou no estúdio Impressão Digital?
Mudou tudo. O que mais me impressionou nem foi a melhoria do equipamento, mas a qualidade dos músicos. Quando eu trabalhava em estúdio barato era tudo de primeira, todo mundo tocava muito. Aí entrei no Impressão e fui gravar a Simone. Que complicação para fazer a música! Eu via meu pai fazer arranjo e era cabeça de nota, fazia o arranjo todo. No Impressão o cara fazia uma cifra e cobrava como se fosse arranjo. A qualidade dos músicos era muito ruim.

 
 
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