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Revista Luz & Cena
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Mago, Bruxo, Feiticeiro?
Na Realidade, Hermeto Pascoal é um Criador em Plena Atividade na Música Mundial
Pedro Paulo Júnior
Publicado em 01/10/2002 - 00h00
Marcella A. de Almeida
 (Marcella A. de Almeida )
A personalidade de um homem que transcende qualquer tipo de rótulo pela beleza singular de sua figura humana e pelo magnífico e profundo universo musical que existe em sua cabeça branca. Hermeto Pascoal é muito mais que um bruxo, mago, feiticeiro, mágico e sejam quais forem os termos criados pela incompreensão daqueles que buscam apenas o pitoresco e o inusitado. Nascido na localidade de Lagoa da Canoa, município de Arapiraca, Alagoas, este compositor, com seus 66 anos regados a muito som, veio ao mundo para mostrar uma das mais criativas formas de expressão musical, que ele denomina de "música universal" - música sem fronteiras e sem preconceito, onde podem estar presentes todos os gêneros, somados ao cultivo de uma riqueza harmônica, rítmica e melódica. Um feito único ao longo de seis décadas de atuação. A idéia que se tem na presença do músico é a de sua predestinação. Hermeto já nasceu com a missão de fazer tudo diferente. É só observar sua inteligência e sabedoria, uma audição absurdamente apurada, seu virtuosismo e, principalmente, a intuição, força maior que o guia desde sempre. Com todo esse dom que recebeu, cria e reinventa instrumentos e nunca deixou de estudar os outros convencionais que desejava tocar. Um excelente exemplo como autodidata, sempre recomenda, além do estudo profundo do instrumento, a dedicação também à harmonia, ritmo e melodia antes do mergulho na papelada dos métodos de teoria musical. Mesmo assim, superando a deficiência de visão, não se furtou a ficar debruçado sobre as teorias porque precisava destas ferramentas para fazer seus arranjos para pequenos grupos, como o lendário Quarteto Novo, big bands e orquestras sinfônicas. Todo esse processo foi feito com muita humildade, integridade, honestidade e determinação. Da sua bela relação com os animais até o uso de sampler segue um pouco da história do grande mestre.

"Os Galegos do Pascoal"

São 66 anos de música, considerando que o primeiro som que fez na terra foi quando nasceu, fazendo um duo com Divina, sua mãe. Aos oito anos já estava embalado, escutando o pai tocando sanfona deoito baixos. Em um dos momentos de saída de seu pai para a roça, Hermeto aproveitou e pegou a sanfona para experimentar e tirar um som do instrumento. No início, pegava escondido. Não que fosse proibido, mas pelo respeito que tinha pelo pai. Um dia sua mãe percebeu que quem tocava a sanfona não era o marido, Pascoal, mas sim seu filho. Ficou ansiosa esperando pelo chefe da família voltar da labuta para dar a notícia sobre o jovem aspirante da sanfona. Em outra ocasião, Pascoal chegou mais cedo a pedidos da mãe. Foi aí que o patriarca viu o menino tocando a sanfona e disse: "vou vender uma vaca e comprar a melhor harmônica para vocês". Perguntou se o outro menino, o Zé Neto, também estava tocando e permitiu que, por enquanto, os dois treinassem em sua sanfona.
Em três meses, Pascoal já promovia bailes em casa colocando os meninos para tocar. Ironicamente, em seis meses, o pai não tocava mais nada perto deles. Estavam tocando muito mais que ele e acabou virando um tipo de empresário. Em todos os bailes e festas juninas da região, lá estavam eles tocando. Começaram a ficar conhecidos como "Os Galegos do Pascoal", por causa do albinismo dos dois. Eles começaram a ser considerados os melhores da região, sendo que Hermeto era identificado como o mais "doido" por todos. O músico constata que já tinha uma concepção moderna na época, diferente do irmão, que tocava harmonias mais simples.
Depois de um certo tempo, já estavam bem evoluídos para a sanfona de oito baixos. Pascoal vendeu mais uma vaca e resolveu comprar uma sanfona maior por sugestão de um vizinho. Então, Zé Neto foi buscar a sanfona em Maceió. Era uma sanfona preta de 32 baixos. "Com um mês já estávamos arrasando, tocando tudo que tinham direito", lembra.
Desde o início, Hermeto já estava entregue totalmente à música. Isso está relacionado a uma dualidade que, na verdade, é uma coisa só: música e vida. Para ele e seus discípulos a música não é um instrumento, a música é a vida. Quando fala de qualquer assunto, desde culinária até uma viagem, tudo é inspiração para a música. "A música já está dentro de mim como está dentro de todos nós, então, não vou me inspirar no óbvio. Estou vendo você me entrevistar e já estou me inspirando. Não separo nada da música", diz.

"Sivuquinha do Pandeiro"

Com três meses quebrando tudo na sanfona nova, os "Galegos do Pascoal" foram tocar em Palmeira dos Índios - AL numa festa de São João, comemoração em que costumavam participar. Hermeto já tinha 14 anos e o irmão, 15. Seguindo a intuição, Hermeto resolveu partir para Recife-PE de qualquer jeito. Apesar de Zé Neto ser responsável pelo irmão mais novo, não teve como impedir a atitude relâmpago do menino. Partiram para Recife, sem a idade mínima, enganando o motorista do ônibus com a história de uma tia que vivia na cidade e tinha morrido.
Em Recife, já com o consentimento dos pais, foram trabalhar na Rádio Jornal do Comércio. Agradaram o dono da rádio e acabaram conhecendo o sanfoneiro Sivuca. Tiveram auxílio inicial com a compra de duas sanfonas, uma de 96 baixos para Zé e outra de 80 para Hermeto. A idéia era colocar os três tocando juntos. Segundo Hermeto, a formação dava certo porque "era bonitinho os três branquinhos tocando juntos" - três sanfoneiros albinos!
Sivuca já era considerado um dos maiores acordeonistas do Brasil, tinha tocado no país inteiro. Um locutor debochado batizou o trio com o nome O Mundo em Chamas. Tocavam em programas de distribuição de prêmios e foi, a partir daí, que começaram a aprender várias músicas com Sivuca. "Eu me lembro que ele tocou Vassourinha e nós não a conhecíamos. Só conhecíamos forró lá do interior, do meio do mato, a música a gente inventava da nossa cabeça", recorda a fase de amadurecimento tocando sanfona. Muita coisa de Luiz Gonzaga havia no início de formação de repertório de Hermeto quando era mais novo. Ele ia às feiras em Arapiraca para escutar as músicas de Gonzagão no gramofone.

 

Em 1955, Sivuca estava prestes a ir para o Rio de Janeiro tocar na Rádio Tupi. O trio teve pouco tempo de vida e se desfez. Como Hermeto tocava muito bem pandeiro, passou a ser sempre escalado para a função. Mas não era bem isso o que queria fazer, o negócio era a sanfona. Aparece, então, outra figura lendária nessa história. O grande compositor Jackson do Pandeiro, que Hermeto homenageou com a música Viva Jackson do Pandeiro, no CD Eu e eles, em que toca todos os instrumentos. Quando fez a música, imaginou justamente aquele momento em que foi puxado para uma conversa e recebeu o seguinte conselho: "não toque pandeiro porque você nunca vai ser um pandeirista, e tem tudo para ser um grande sanfoneiro. Não fale nada, mas bote pé firme e não toque pandeiro", disse Jackson. Convocaram novamente Hermeto como o "Sivuquinha do Pandeiro", e ele não aceitou.
Foi chamado na sala da diretoria geral como um simples empregado e, na ocasião, Hermeto já tinha a postura que tem hoje: "na minha cabeça nunca tive patrão", define. Apesar de não estar apto a tocar sanfona como Sivuca naquele momento, sabia que tinha um contrato assinado pelos pais. Hermeto tentava passar a idéia de que a rádio seria um bom lugar para aprender a tocar sanfona, mas o diretor não acreditava no potencial do rapaz e lhe deu quinze dias de suspensão. Tudo isso também serviu para seu irmão, Zé Neto. Na volta, o diretor quis mandá-los para outras rádios filiais no interior até o término do contrato. Hermeto foi para Caruaru e Zé Neto para Garanhuns.
Em Caruaru, estudou exaustivamente a sanfona. Depois de um ano, Sivuca aparece na cidade, e foi tocar na rádio. Enquanto estava regendo uma banda num show ao vivo, ficou curioso para saber quem estava tocando acordes modernos na sanfona. Disseram-lhe que era um refugo da rádio da capital. Naquele tempo músico era igual a jogador de futebol - as rádios queriam qualquer um que realmente fosse bom, e como já conhecia Hermeto... Sabia que estava muito bem naquele momento. Com sua influência, Sivuca promoveu-lhe um aumento de salário pois disse que, caso não o fizessem, iriam perder um grande acordeonista. O ordenado aumentou, Hermeto conseguiu quitar dívidas e comprou uma sanfona própria.
Para Hermeto, essa história serve como exemplo para os músicos aprenderem que com muita facilidade não é bom fazer nada. Com muito dinheiro pior ainda. "Você tem que se enriquecer no que almeja realmente fazer", diz.

A Intuição a Serviço da Música

Ele e o irmão estavam ótimos e voltaram para a rádio, em Recife. Logo em seguida, Zé Neto foi para o Rio de Janeiro. Hermeto resolveu enfrentar o diretor da rádio e mostrou que estava com tudo e bem perto de Sivuca. Este teve aulas com Guerra Peixe, na época. Hermeto nunca teve um professor. "Na verdade, meus professores foram Deus e o mundo", complementa.
Mais tarde foi morar no Rio de Janeiro e depois em São Paulo. Construiu família em Sampa, ao lado da eterna Ilza. Estudou mais a teoria musical nessa época. Queria se aprofundar nisso porque tinha muita coisa na cabeça, queria formar grupos e escrever para orquestras. Nas partituras que escreve para sinfônica, atualmente, deixa bem claro que as músicas não são mais dele. "É de todos, cada um sinta-se compositor dessa música. É como passarinho que voou. Ninguém escreveu isso numa partitura antes. Não há muitas indicações no papel porque não sou guarda de trânsito", diz.
Dom Salvador tem o orgulho de dizer que foi o primeiro a escrever uma música da autoria de Hermeto. Na época que fez Coalhada, não sabia escrever e entregou nas mãos do pianista. Sua percepção já estava tão avançada que, tocando com os outros, não precisava de partitura (e nunca precisou!). No piano ou no acordeom em uma orquestra, escutava a harmonização do naipe de saxofones, percebia o campo tonal através do contrabaixo e já tinha deduzido todos os acordes. Desenvolveu esta maneira intuitiva de tocar e se preocupava muito em passar este aprendizado para os que estavam começando. "Quem tiver filhos, não coloque para estudar teoria com menos de doze anos. Porque se ele tiver que tocar algum instrumento já vai poder tocar sem teoria. Não adianta colocar o cara para estudar teoria e depois aprender a tocar o instrumento, isso poderá dificultar", aconselha.
O mestre ainda define que quanto mais se toca com qualidade menos se ganha, então, é melhor se preparar para as dificuldades e amar o que se faz. "Ganhar é contingência, ganho pelas minhas composições. Não ganho porque estou tocando. O que ganho dá para sobreviver. Quem quiser fazer uma boa música tem que botar isso na cabeça", diz.



Quarteto Novo

No inicio da década de 60 tocou na noite, formando grupos como o Som Quatro, depois o Sambrasa Trio, ao lado de Airto Moreira na bateria e Humberto Clayber no baixo. Mas foi no final dos anos 60, integrando o Quarteto Novo, que descobriu a vocação real para compor. O quarteto abriu novos caminhos para a moderna música instrumental brasileira, com propostas diferentes, misturando ritmos nordestinos com arranjos avançados. Antes disso, apenas os grupos de samba-jazz desempenharam um papel renovador, mesmo assim, todos eram muito calcados no jazz.
Sendo pianista e flautista, ao lado de Airto Moreira, o guitarrista Heraldo do Monte e o baixista Theo de Barros, Hermeto começava a expor a sua concepção de música universal sem saber exatamente o que estava fazendo. E precisava? Espontaneidade e muito som ajudaram a germinar aquela idéia que, mais tarde, floresceu com o Hermeto Pascoal e Grupo, e que hoje, continua dando frutos com a Itiberê Orquestra Família.
Músico e discípulo de Hermeto há 25 anos, o baixista e compositor Itiberê Zwarg lembra que antes de entrar para o grupo já acompanhava o seu trabalho. Percebia que o que ele fazia destoava de tudo. Quando estava atuando com o grupo na década 70, foi ainda mais evidente que, não só era diferente na qualidade, como também na sua filosofia. "Eram pouquíssimos os trabalhos que possuíam um ideal de fazer um som da pesada e de construir alguma coisa", diz o baixista, que sabia de toda essa profundidade na forma de agir do Campeão (apelido recorrente por todos os amigos e músicos), quando foi convidado para fazer quatro concertos no Rio de Janeiro. "Larguei tudo e minha vida mudou naquele dia, exatamente porque eu sabia dimensionar a importância daquele convite, aonde eu poderia estar entrando", diz.

 

Timbres e Homenagem aos Animais


Na fase dos festivais, quando já era bem conhecido, veio um convite da TV Bandeirantes para fazer um especial. Aproveitou e fez a homenagem que sempre quis para os animais. Era uma retribuição às influências que os bichos deram ao músico. Pediu uma fazenda e todo o equipamento para a realização de um concerto, junto com os animais e todos os integrantes do Hermeto Pascoal e Grupo. Presentes estavam o saxofonista Nivaldo Ornellas; o pai, Pascoal, tocando sanfona de oito baixos; e a formação do disco A música Livre de Hermeto Pascoal, primeiro disco com o Grupo, tendo Nenê na bateria, Alberto no baixo e Antônio Ferreira da Anunciação na percussão.
A sensibilidade que ele possui para tocar com os animais é tão grande que realmente causa reação nos bichos. Este tipo de comunicação, obviamente, não é de hoje. Todos os sons da natureza ele ouvia como música quando era pequeno em Arapiraca. Ele curtia os passarinhos e todos os animais na roça tocando flauta; provou que não é nada fácil improvisar com os sapos no filme Hermeto Campeão, do diretor Thomas Farkas; e ainda descobriu a beleza da musicalidade da voz humana com o "som da aura" - tipo de composição que acompanha, através de gravação, as nuances da fala humana.
Um timbre para ele é algo tão vasto que é capaz reproduzir som em qualquer coisa, descobrindo o melhor ponto de extração para soar, timbrar. Na verdade, o albino é um percussionista por excelência. Além da flauta e o fole de oito baixos, outra maneira de fazer e receber música foi com a percussão. Seu avô ferreiro batia na bigorna e ele ficava escutando os harmônicos que o ferro produzia.
No Grupo sempre usou e combinou timbres interessantes entre os músicos. Um bom exemplo na maneira peculiar de utilizar um instrumento determinado junto ao detalhe sonoro de um outro instrumento foi o barítono tocando com o soar da esteira da caixa da bateria na música Surpresa, do disco Brasil Universo, de 1985.
Segundo Itiberê, Hermeto não gosta muito do lado eletrônico, é meio avesso a esse tipo de som, pois prefere fabricar timbres de maneira artesanal. O teclado é algo que precisa usar pela praticidade de manuseio, até a sua utilização no palco para improvisos. O instrumento que o acompanha há anos e que, segundo ele, se apresenta mais prático é o DX7. "Pegou alguns timbres que gosta mais e usa de uma forma muito bonita", diz Itiberê. Outra ferramenta para tornar presente os sons da natureza em seus shows é o sampler. Fabricou alguns timbres interessantes como água caindo dentro de um pote com cromatismo e o porco também em cromático.
Aí está a prova de que nunca quis fazer sensacionalismo com o porco em gravações e shows. O que sempre quis utilizar mesmo foi o som do animal mas, dificilmente, entendiam isso.

 

Miles Davis


Na década de 80, a música instrumental ganhou um pouco mais de espaço na mídia, porém, ficou em sua maioria endurecida e deteriorada pelo jazz-rock ditado pelo fusion. O caminho de Hermeto foi completamente diferente, com a realização de discos antológicos como Só Não Toca Quem Não Quer e o próprio Brasil Universo. Manteve-se numa gravadora pequena, a Som da Gente, e não recebia o devido reconhecimento pela imprensa.
A notoriedade internacional veio com a gravação e o lançamento de discos no exterior, apresentações em grandes festivais como o de Montreux, em 79, e a amizade com grandes músicos como Miles Davis e Cannonball Adderley.
Com Miles foi um encontro de irmãos de som. Os dois se entenderam instantaneamente, sem Hermeto saber inglês e Miles, muito menos, o português. Mas Airto Moreira deu uma ajuda inicial até se comunicarem apenas através da música. Um dos assuntos desse diálogo musical era o ouvido absoluto de Hermeto. Miles ficou impressionado com a facilidade do músico em identificar as notas já transportando para o trompete. Ainda tentou arquitetar a gravação de um disco ao vivo que resultou no registro de duas composições de Hermeto no CD Live Evil, de Miles: Capelinha (Little Church) e Nem Um Talvez. Na primeira, Hermeto cria uma atmosfera onírica com melodia belíssima feita pelo seu assobio junto ao tradicional trompete com surdina de um dos expoentes do cool jazz.
Hermeto esclarece a história polêmica sobre Miles ter recebido o crédito por essas músicas. Algo corriqueiro na discografia do trompetista que também ganhou crédito por músicas de Wayne Shorter e Bill Evans. Para Hermeto, isso era um engano de produção e o pessoal achava que ele roubava mesmo as músicas. Miles fazia vários concertos, tudo de improviso. Depois pegava as fitas e escolhia as melhores faixas. Entre várias, escolheu as duas músicas de Hermeto. Confiava muito no produtor e repassava toda a responsabilidade pela montagem do disco. "Nunca teria a intenção premeditada de fazer isso. Jamais faria pelo o quanto ele gostava de mim, do meu trabalho e a consideração que um tinha pelo outro. Ele era um cara muito franco e positivo", explica. Pouco tempo depois fez um pronunciamento sutil à imprensa. "Para calar a boca de todo mundo falei que daria todas as minhas músicas que ele quisesse, pois estariam em boas mãos", diz, dando uma boa risada.

"O Bandeirante de Mata Pesada"

O bairro do Jabour, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, é o lugar para recarregar as energias do multiinstrumentista. Quando não está viajando, ele está no pequeno estúdio compondo ou recebendo amigos para fazer um som bem educativo. Contudo, há alguns anos, a bem cuidada casa foi reduto de uma criação incessante e de ensaios diários com os integrantes do Grupo. Foi nesse ambiente fraterno e de muito trabalho que os preceitos da música universal se desenvolveram.
Um dos elementos principais de aprendizagem da chamada "Escola Jabour" é exatamente o desenvolvimento do senso harmônico, isso sem falar da parte rítmica. Quando tocava bombardino, junto com Itiberê na tuba, o saxofonista Carlos Malta e o pianista Jovino Santos Neto nas flautas, ensinava como sentir o acorde soar, perceber a afinação na hora de tocar. De propósito, escrevia arranjos bem atonais, com semitons e acordes difíceis de afinar para instrumentos de sopro. Fazia isso para ensinar e aprendeu muito também. Outra demonstração de sabedoria e humildade era aprender com o que passava para os seus músicos. "Com o resultado daquilo que você montou, poderá saber se está tudo certo ou não. Quando as pessoas assimilam é uma alegria muito grande", diz, considerando também a liberdade que cada um deveria ter com si próprio e que serve para todos os músicos: "não tenham medo de errar, às vezes, o medo de errar faz você tocar certo sem sentir as coisas".
Sempre tomou muito cuidado com as influências - não copiar o mestre - e sempre orientava que cada um também desenvolvesse este conceito na cabeça.
Foram muitos anos de aprendizado para a formação mais clássica do grupo, tendo também Márcio Bahia na bateria e Pernambuco na percussão. Não demorou muito, e o filho Fábio Pascoal também assumiria um posto no time.
É uma escola que engloba, além da formação de músicos completos, a formação de caráter, a luta contra o orgulho, a vaidade e também construção de líderes. Itiberê, um dos mais apegados ao trabalho do gênio, está levando tudo que aprendeu como compositor e arranjador na "Escola Jabour" para os filhos e netos de Hermeto da Itiberê Orquestra Família.
De tudo aquilo que foi plantado desde o início, começam agora a aparecer os frutos em termos bem práticos. Hoje, podemos ver músicos não só talentosos, mas com muita vontade de tocar. As gerações que acompanharam a produção de Hermeto foram influenciadas dessa maneira. "Quando o Grupo surgiu, Hermeto tocou para jovens, depois foi apresentado aos filhos desses jovens e agora está sendo apresentado aos netos. A orquestra é um pouco o resultado disso aí. Ele veio da mata grande, bandeirante de mata pesada, e agora nós estamos na campina, está mais fácil", diz o fiel discípulo que recorda uma fase em que ninguém queria tocar com o mestre, apenas Itiberê esteve sempre presente. Bem diferente dos tempos atuais. "Hoje em dia, se ele diz que existe vaga para qualquer instrumentista, as pessoas podem fazer fila na porta, mas não era assim. Isso é o trabalho que frutifica mesmo sem mídia, sendo mesmo uma conquista da música".

Música Bem Tocada

Perguntado sobre a música que é feita no Brasil, diz que tem muita coisa ruim sendo feita, mas respeita todos os tipos, desde que seja bem tocada. Citou Martinho da Vila e Zeca Pagodinho como sambistas que o agradam, e acha que tem muita gente que faz um som moderno, mas despreza outras coisas.
Ele conta uma história que define exatamente o que pensa sobre a música no país. Visitou uma casa noturna em que o dono ficou muito feliz com a sua presença e adiantou logo que no estabelecimento só tocava MPB. Para Hermeto, o tipo de música que estava ouvindo era feita por brasileiro, cantada em português, mas com o ritmo de funk, então, não era MPB. "O que caracteriza a música é o ritmo. Eu posso tocar Bach com chorinho, por exemplo. Não adianta falar que é MPB se não tiver samba, baião, frevo, maracatu e os costumes do Brasil que também têm influências", esclarece.
Chegou a pensar que o choro ou o baião fossem únicos no Brasil antes de viajar. "Graças a Deus esses ritmos são universais. Cheguei em Portugal e escutei chorinho feito lá. Claro que nós tocamos melhor, mas se você perceber, hoje nós tocamos jazz com mais criatividade do que o próprio americano. Ele acaba sendo muito arrogante com o jazz, assim como os eruditos eram, mas a nova geração está mudando isso", diz.
Falando ainda sobre os norte-americanos, Hermeto constata que a música que deram mais para os músicos brasileiros foi o jazz e isso ele sentiu na pele. Teve muito trabalho com os músicos que foram para o Grupo porque todos eram jazzistas. Mesmo assim vê com otimismo a vocação brasileira para a música universal. "Aqui todo mundo tem no sangue mais facilidade para tocar outras coisas. Mais do que qualquer outra pessoa. Na verdade, músico bom não tem pátria e nem planeta. Em qualquer lugar toca bem", conclui.

"Gravadora Inteligente"

Depois de sua linda participação no documentário Janela da Alma, de Walter Carvalho e João Jardim, Hermeto está planejando grandes vôos. O Calendário de Som - livro de composições para cada dia do ano, em que homenageia todos os aniversariantes do mundo - vai para a terceira edição e deverá ser lançado também nos EUA e no resto do mundo. Está com grandes expectativas sobre as atividades da Itiberê Orquestra Família, que deve entrar no estúdio em breve para gravar trinta músicas do já falado Calendário. Enquanto isso, pretende viajar bastante com o grupo e continuar as apresentações com piano solo.
Trabalho de grande importância para este ano é um evento em sua terra, em Alagoas. Trata-se de um projeto envolvendo músicos, compositores e um coral, todos reunidos em festejos do folclore da região como o reisado, por exemplo. "Faremos músicas inspiradas na feira de Arapiraca, unindo a sinfônica com várias outras tendências. Pretendo levar o Grupo também", diz.
Um disco de forró muito atrasado no lançamento deverá sair este ano. Integrantes do Grupo atual, Itiberê e o saxofonista Vinícius Dorin, participaram das gravações ao lado de Alceu Valença, Heraldo do Monte, João Cláudio - "um humorista que canta muito bem forró" e vários músicos de Pernambuco. Há também uma nova cantora chamada Marina, neta de um parceiro de Luiz Gonzaga, o Zé Dantas.
Desde o início da década passada sem gravar, Hermeto Pascoal e Grupo podem preparar alguma surpresa para os próximos meses. "Está na hora de fazer mais um disco com o grupo, estamos sendo convidados por várias gravadoras e escolhendo qual nos convém pois queremos uma que seja inteligente, que depois faça alguma coisa e não deixe o disco apenas na prateleira".
Sejamos otimistas. Apesar da absoluta falta de bom senso e bom gosto do mercado fonográfico, com certeza, vai aparecer uma gravadora bem inteligente e com empenho para registrar mais um momento de beleza ímpar do grande Campeão! Aguardaremos ansiosos, não é mesmo?


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Discografia

Eu e Eles - Rádio MEC (1999)
Festa dos Deuses - Polygram (1992)
Hermeto Solo - Por Diferentes Caminhos - Som da Gente (1988)
Só Não Toca Quem Não Quer - Som da Gente (1987)
Brasil Universo - Som da Gente (1986)
Lagoa da Canoa, Município de Arapiraca - Som da Gente (1984)
Hermeto Pascoal e Grupo - Som da Gente (1982)
Cérebro Magnético - Warner (1980)
Ao Vivo Montreux Jazz Festival - Warner (1979)
Zabumbe-Bum-á - Warner (1979)
Slaves Mass - Warner (1976)
A Música Livre de Hermeto Pascoal - Warner (1973)
Hermeto - Polygram (1970)

Grupos:

Quarteto Novo - Quarteto Novo - Odeon (1967)
Sambrasa Trio em Som Maior - Sambrasa Trio - Som Maior (1966)
Conjunto Som 4 - Conjunto Som 4 - Continental (1964)
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