Atendendo ao pedido de diversos leitores, vamos falar um pouco sobre a gravação deste instrumento que apresenta os maiores desafios para o técnico: a voz humana.
Características da Voz como Instrumento
A dificuldade que a voz apresenta ao ser gravada vem de alguns fatores bastante característicos que veremos abaixo.
Faixa Dinâmica Extensa: é comum encontrarmos performances onde existe uma variação de nível muito grande, com o cantor emitindo baixo demais em alguns trechos (principalmente, os mais graves) e alto demais em outros (geralmente, nos agudos). Os momentos mais altos podem ocasionar a saturação do gravador e até mesmo do circuito do microfone, enquanto os mais baixos, por não terem volume suficiente, provavelmente terão um som de qualidade pior. Uma primeira solução poderia ser o fato de informar ao cantor do problema e contar com a sua habilidade técnica para corrigi-lo. Porém, isto raramente funciona, só servindo para deixar o cantor mais preocupado com a técnica e menos à vontade. Por isso, contamos com nossos recursos para minimizar a faixa dinâmica, sendo os dois mais usados o compressor e a pilotagem do fader. Mais adiante veremos como usá-los.
Alteração de Timbre: freqüentemente, a variação de volume vem acompanhada de uma forte variação de timbre ao longo da música. Isto ocorre por causa da variação da distância do microfone (que apresenta um som mais grave ao se cantar mais perto - o chamado "efeito de proximidade") e também por causa da diferença na emissão da voz pelo cantor. A maneira mais comum de se corrigir este efeito é através do uso de equalizadores. O plug-in Mic Modeler também é excelente para contrabalançar o efeito da variação da distância da boca ao microfone.
Ruídos de Execução: tipicamente ocorrem três tipos de ruídos gerados pela voz. A sibilância, que é a captação dos "esses" com nível muito alto; os puffs que aparecem na emissão de consoantes como "p" ou "b" e ruídos ocasionados pelo movimento dos lábios, da boca ou da mandíbula, aparecendo como pequenos estalos, principalmente, quando o cantor abre a boca para começar uma frase. No caso da sibilância, podemos alterar a posição do cantor e do microfone e usar um dispositivo (ou plug-in) chamado de-esser. Para os puffs coloca-se uma tela (o pop filter) na frente do microfone para diminuir a velocidade do ar que chega à cápsula. Para os outros ruídos, se não for possível afastar mais o cantor, só mesmo limpando o canal de voz posteriormente com uma ferramenta do tipo Pro Tools.
Interpretação: todos nós usamos e ouvimos vozes todos os dias durante várias horas. Por isso, este é o instrumento musical mais tocado e, certamente, o que causa maior impacto. Nossa ligação com o som de voz é bastante profunda, começando ainda antes de nosso nascimento, durante a gestação. Por isso, gravar bem uma voz envolve não só fazê-lo tecnicamente certo, mas também psicológica e artisticamente convincente. Em outras palavras, não basta a voz estar afinada e no tempo pois, além disso, ela deve apresentar uma boa interpretação.
Disposição do Cantor: a voz é o único instrumento cujo timbre depende do seu próprio estado de espírito. Além disso, é o único que fica rouco, afônico, gripado, mal-humorado, etc. Nossa tarefa é fornecer as melhores condições ao cantor tanto relativas ao som (principalmente, nos fones) quanto ao ambiente em que a voz será gravada (iluminação, temperatura, tranqüilidade etc.) O técnico deve lembrar sempre que a sua atitude em relação à gravação influencia decisivamente em uma boa performance.
Microfonação
Normalmente, os melhores microfones do estúdio são os usados para voz, sendo os mais utilizados os condensadores de diafragma grande. Existe uma tendência geral para se usar os condensadores valvulados, embora haja transistorizados com excelentes performances. Assim muitos podem achar que o microfone mais caro é melhor para se usar, mas nem sempre isto é verdade. Sempre que possível, vale a pena testar a voz com vários microfones, escolhendo o mais adequado àquela pessoa e àquele estilo. Por exemplo, Paul Rodgers só canta com o Shure SM57 - um microfone dinâmico de baixo custo.
A configuração mais usada é a cardióide. A omni pode ser usada se estiver ocorrendo muito efeito de proximidade, ou para maior fidelidade, mas deve-se tomar cuidado em verificar se a acústica da sala não interfere. As salas menos vivas são indicadas. Para as salas onde há maior reverberação natural recomenda-se o uso de anteparos em volta do cantor para diminuí-la.
Qualquer que seja a sua opção de microfone (e na realidade dos estúdios menores existe apenas um bom microfone disponível), deve-se tomar muito cuidado com o posicionamento. Um bom lugar para se colocar o microfone é diretamente à frente do cantor, com o diafragma na altura do nariz e inclinado ligeiramente para baixo a fim de apontar diretamente para a boca. Se o timbre estiver muito opaco e se a sibilância não atrapalhar, experimente colocá-lo à altura da boca e exatamente na vertical.
Se houver excesso de sibilância, pode-se tentar inclinar mais o microfone, ou colocá-lo ligeiramente de lado. Lembre, porém, que isto terá uma tendência de diminuir o brilho do som da voz. Para diminuir os puffs, usa-se o pop filter, que é colocado entre o microfone e o cantor. O pop filter é ótimo também para manter o cantor longe do microfone, ajudando a reduzir os puffs e evitando o aumento dos graves devido ao efeito de proximidade.
A distância típica entre o cantor e o microfone deve ser de cinco dedos a um palmo, facilmente delimitada pela colocação do pop filter. Se o cantor tiver uma boa técnica de microfone, pode-se reduzir esta distância e deixar que ele se movimente mais para perto quando julgar necessário. Existe, porém, uma tendência muito comum nos cantores de irem se aproximando cada vez mais do microfone com o passar do tempo. Verifique constantemente a distância. É freqüente também a estante de microfone sofrer pequenos deslocamentos que mudam a altura. Vale a pena verificá-la. Tome cuidado ao posicionar o microfone, pois muitos cantores cantam apontando o rosto para cima ou para baixo enquanto outros costumam flexionar um pouco os joelhos.
Para se microfonar coros (backing vocals), costumo usar dois cardióides, um para os homens e outro para as mulheres. Os dois grupos são colocados um de frente para o outro para aumentar o isolamento de cada microfone. Como um microfone estará de costas para o outro, o vazamento estará chegando a cada um deles justamente na região de menor sensibilidade. Os dois grupos podem ser gravados em um mesmo canal, embora gravar separadamente permita maior facilidade de equilíbrio posterior. Quando não for conveniente ou necessário dividir os cantores, pode-se usar um microfone em omni para dar mais liberdade de posicionamento a eles. Para grupos de até três pessoas a maioria dos cardióides funcionará. Especial atenção deve ser dada aos vazamentos de fones.
Para corais a situação mais problemática é a dos fones. Raramente o estúdio disporá de um fone para cada cantor e, se dispuser, os vazamentos poderão incomodar bastante. Outro aspecto é que muitos cantores de coral nunca cantaram de fone e também precisam ouvir a voz do companheiro do lado para uma melhor afinação. Assim, pode-se optar por monitorar através de caixas, tocando só a base dentro do estúdio. Extremo cuidado, porém, deve ser tomado pois certamente haverá vazamentos que serão impossíveis de tirar na mixagem. Uma sugestão adicional é colocar o coral de costas para uma parede com alta absorção acústica, reduzindo assim as reflexões do som das caixas de monitor que chegariam à frente do microfone.
Certifique-se de que a base não tem nenhuma informação que não será usada na mixagem, como metrônomo ou voz guia. De preferência não mande bateria para esta caixa, pois será mais difícil de esconder na mixagem. Um terceiro método pode funcionar eventualmente, que é mandar fones só para o regente e para alguns elementos-chave no coral. Este caso pode ser tentado se a base não for muito ritmada, por exemplo.
A colocação de microfones para corais grandes pode usar as técnicas estéreo (X-Y, M-S, etc). A mais interessante talvez seja o par espaçado de omnis (a chamada técnica A-B), com um microfone central extra também omni para corais muito grandes. Lembre-se de deixar microfones de detalhe se houver solistas. Muito cuidado com as diferenças de fase. Verifique se não está ocorrendo alteração sonora muito grande em mono.
Voltando ao caso da gravação de voz principal, uma questão interessante é se devemos colocar o microfone em pé ou de cabeça para baixo. Para os transistorizados, tanto faz, dependendo apenas da vontade do cantor. Se ele precisar ler a letra, a posição invertida será melhor e se ele gostar de ter contato visual constante com a técnica pode-se optar pela posição normal. Para os valvulados alguns técnicos defendem a posição invertida porque o calor gerado pela válvula aquece o ar em volta do microfone e este ar tende a formar um fluxo ascendente. Se o microfone estiver na posição normal, este fluxo de ar quente ao passar na frente da cápsula pode alterar o som. Tudo bem que este motivo é bem sutil, mas tem fundamento.
Ler a letra ao cantar pode se tornar um fato bastante problemático. Primeiro porque o conjunto do pop filter mais o microfone representa um obstáculo considerável à visão e também porque a presença da estante com a letra próxima ao microfone pode ocasionar reflexões sonoras indesejáveis. O microfone e o pop filter devem ser colocados de forma a atrapalhar a visão o mínimo possível. Observe com cuidado se o cantor não está virando o rosto para ler a letra, o que ocasionará mudanças de timbre. Quanto à estante onde a letra é colocada, o som da voz refletido em sua superfície pode chegar ao microfone e provocar cancelamento de algumas freqüências se ela estiver próxima demais, devido ao efeito chamado filtro pente. Por isso, procure usar estantes vazadas, tais como aquelas dobráveis usadas para partituras, e mantenha a letra o mais longe possível do cantor - provavelmente imprimindo-a com letras grandes.
A escolha do pré-amp segue os mesmos princípios dos microfones. Geralmente, os melhores (leia-se "mais caros") tendem a dar melhores resultados, mas vale bastante a pena testar várias opções (quando elas existirem, é claro). Os pres valvulados costumam ser mais suaves, mas normalmente apresentam ruído de fundo mais alto.
Os Fones
Se o microfone e o pré são importantes para uma boa captação do som da voz, dos fones dependerá a qualidade da voz emitida, já que eles influem diretamente na afinação, na consistência dinâmica, tímbrica e na interpretação. Segundo minha experiência, não existe nenhuma relação direta entre voz baixa no fone e afinação alta ou vice-versa. O que tenho constatado é que para cada pessoa existe um nível bem definido para a voz em relação à base que faz com que ela cante afinado. Se a voz estiver acima ou abaixo deste tal volume, a pessoa desafinará (para cima ou para baixo). Para achar este volume, comece com uma mix de fone que esteja boa para você e passe a música com o cantor. Se ele não estiver afinando, experimente abaixar ou aumentar um pouco o volume da voz nos fones até que se perceba uma melhoria na afinação. Alguns cantores sabem exatamente como seus fones devem estar e ajudam muito os técnicos; outros não têm a menor idéia mas são bastante precisos ao solicitar esta ou aquela alteração de equilíbrio. O pior caso são os que pensam que sabem o que estão falando e acabam desequilibrando completamente a monitoração. Infelizmente, não há como saber de antemão qual é o caso, e você deverá se adaptar a cada pessoa.
Ao fazer o equilíbrio dos fones, leve em conta não só que a mixagem deverá ser boa, mas também que o cantor deverá se sentir seguro com ela. Use, então, um par de fones na técnica e vá fazendo a mixagem com eles no ouvido. Evite a tentação de fazer as mandadas de olho - embora você, provavelmente, já tenha uma perfeita noção de como está o equilíbrio dos fones só olhando para as mandadas, o cantor poderá se sentir bastante inseguro, achando que você não dedicou a atenção necessária a este aspecto tão importante. Na primeira vez que você gravar um determinado cantor, além de fazer o equilíbrio usando fones na técnica, vá até o estúdio e ouça o fone da posição do cantor, aproveitando para testar o microfone. O assistente de estúdio poderá fazer as alterações nas mandadas que você indicar. Aproveite para verificar o reverb e a sibilância - uma boa maneira é contando de 60 a 66 forçando os esses, o que também é legal porque sai do famoso "alô, som!" e "um, dois, três; testando".
Lembre-se também que muitos cantores passam o equilíbrio de seus fones apenas ouvindo, esquecendo que ao cantar o som chegará a seus ouvidos de duas fontes, dos fones e do seu próprio corpo. Peça, então, que ele cante um pouco com a base para verificar se o equilíbrio está mesmo certo.
Tome cuidado com o volume total dos fones, pois eles podem vazar facilmente para o microfone. Use-os no menor volume possível que ainda seja confortável para o cantor. Se você começar com eles altos, a fadiga auditiva poderá prejudicar o cantor depois de algumas horas. Se ele estiver usando os fones com volume alto, deixe claro que eles não deverão ser retirados da cabeça próximo ao microfone, para que não haja realimentação (microfonia). Se o cantor gostar de tirar um dos fones para afinar melhor, peça que ele o mantenha colado à cabeça, ou cancele você a mandada do som para aquele lado. Previna-se quanto ao hábito muito comum de o cantor acabar de cantar e pendurar os fones no microfone!
Os vazamentos durante a gravação de coros e backing vocals são críticos, embora não sejam um problema tão sério porque estas vozes são usadas em menor volume nas mixagens. Cuidado, porém, para que nas mudanças de formação ou de música não sejam esquecidos fones ligados dentro do estúdio.
O Ambiente
É bastante cruel a tarefa do cantor. Deve dar o melhor de si em uma sala que o ar condicionado deixou fria e com baixíssima umidade, ouvindo a música e sua voz de uma maneira nada natural (os fones), sabendo que qualquer falha será notada, que todos os seus movimentos estão sendo julgados e por aí vai. Nossa tarefa é fazer com que o ambiente seja o mais confortável possível, física e emocionalmente. Tudo deve ser levado em conta. Retire todos os instrumentos possíveis da sala, verifique se não há poeira, mande aspirar o tapete na véspera (uma rinite alérgica pode arruinar o dia), ajuste a temperatura e a iluminação de acordo com o gosto do cantor. Procure usar iluminação indireta e - importantíssimo - não deixe que haja contraste térmico entre o estúdio e a técnica (gripes podem arruinar a semana inteira).
Deixe sempre uma cadeira confortável à disposição e, principalmente, uma jarra de água à temperatura ambiente, mesmo que ele não peça. A hidratação das cordas vocais é importantíssima para uma boa performance e para que a voz dure mais tempo. Café ou chá deve ser deixado à disposição, mas não necessariamente dentro do estúdio.
Além das características físicas do ambiente, a sua atitude e a das outras pessoas dentro da técnica devem ser cuidadosamente avaliadas. Peça ao produtor, com antecedência, que restrinja fortemente o número de pessoas no estúdio durante a gravação das vozes. Visitas neste momento serão sempre inconvenientes. Como diz o velho ditado: "no estúdio ou você está trabalhando ou atrapalhando". Se julgar necessário, reduza as luzes da técnica também ao mínimo para não distrair o cantor. Tenha uma cópia das letras à mão e reduza ao máximo a possibilidade de telefonemas ou outras interrupções. Mais importante do que qualquer outra coisa: mantenha a atenção no cantor e na performance. Evite conversar e, principalmente, rir e fazer gestos enquanto o cantor estiver gravando. Demonstre interesse e dê sua opinião sempre que julgar necessário. Seja, porém, sempre positivo. Não minta para agradar. Seja sincero, mas cuidado com o jeito de dizer as coisas. "Acho que você está melhorando cada vez mais, vamos tentar mais uma!" soa bem melhor do que "essa foi uma porcaria!".
Você deve estar se perguntando se essa atitude tão disciplinada por parte do técnico é realmente necessária. Só posso dizer que funciona. Devemos lembrar que nossa função não é só gravar uma voz afinada e no tempo. Temos que conseguir extrair a melhor performance possível no menor tempo, e a maioria dos cantores conta com o produtor e o técnico como parceiros. Você deve demonstrar (e sentir) que faz parte do time e que está decidido a obter um bom resultado.
Mantenha também os bons hábitos, pois é necessário que o produtor e os músicos em geral confiem em seu trabalho e em sua responsabilidade. Por exemplo, quando o produtor for lá dentro para ter uma conversa direta com o cantor, desligue o microfone imediatamente.
Quanto à gravação em si, existem dois métodos básicos. Pode-se fazer um take, ou seja, gravar uma vez, e ir corrigindo os trechos necessários, ou fazer vários takes e combiná-los em um outro canal aproveitando os melhores momentos de cada um (a este processo chamamos comping). Nestes dias de fartura de canais acho muito menos desgastante a segunda opção, desde que se limite a três ou no máximo quatro o número de takes a combinar. Se o comping ainda possuir momentos problemáticos, pode-se agora fazer novos três ou quatro takes e assim por diante. Por experiência própria posso afirmar que é inviável fazer um comping a partir de mais de quatro takes - quando vamos ouvir o sétimo canal já não lembramos mais do primeiro.
No próximo mês, vamos ver como usar equalizadores, compressores e outros efeitos na gravação de voz e durante a mixagem.
Fábio Henriques (
fabhenr@openlink.com.br) é engenheiro eletrônico e engenheiro de gravação, trabalhando no Discover Studio. Atualmente, ministra o curso de Técnicas de Gravação na Escola Rio Música (RJ).