De fala mansa e sorridente - este foi o Marcos Ariel, pianista e flautista tipicamente carioca, que eu conheci no dia da entrevista em sua casa, no sossegado bairro de Botafogo, no Rio de Janeiro. Falar de música para ele, definitivamente, é um prazer. A influência musical do seu pai que, apesar de não ter se tornado músico, era um apaixonado por todo este "mundinho", as diferentes fontes inspiradoras que buscou para tentar descobrir o seu próprio caminho, o erudito, o clássico...
Tudo isso colaborou (e muito!) para a formação deste que se diz ainda um aluno extremamente dedicado e que se compara a uma criança diante do seu brinquedo preferido quando está de frente para um instrumento musical. Atualmente, um dos seus novos trabalhos inclui um CD com músicas de Tom Jobim. "Um sonho antigo e muito pensado", disse. Trilhas sonoras para a vida.
TRILHANDO UM CAMINHO
M&T: Quando foi que a música passou a fazer parte de você?
Ariel: Eu comecei a estudar piano aos nove anos de idade porque o meu pai era um profundo conhecedor da música erudita. Ele não era músico, mas adorava música e eu, espontaneamente, ouvia aquilo o dia inteiro em casa. Minha primeira professora foi D. Ângela, mãe de um amigo meu, com quem eu estudei até os doze anos de idade. Foi aí que veio a época forte dos Beatles, Jimi Hendrix, Led Zeppelin, e eu acabei me encantando pela guitarra e o violão. Aí eu já tinha uns 16 ou 17 anos. Mais tarde, um grande amigo do meu pai, e também um profundo conhecedor de jazz, chamado Luís Orlando Carneiro, viu que eu tinha o dom da música e começou a me apresentar um pouco desse ritmo. Eu já escutava tudo de erudito - Bach, Beethoven, Haendel etc. e comecei a ouvir também o jazz tradicional, ou seja, Bill Evans, Oscar Peterson, Lennie Tristano, Chick Corea... Sem falar naquele primeiro show do Hermeto Pascoal no Rio, em 1972, no Teatro da Lagoa. Eu pirei de vez! Dizia para todo mundo: "quando eu crescer quero ser igual àquele cara, ter a mesma atitude!" Hermeto foi uma diretriz muito forte na minha carreira.
M&T: E você abandonou o piano de vez?
Ariel: Claro que não. Logo depois deixei de lado o violão e a guitarra, voltei ao piano e quis começar a estudar flauta também. Participei da escola de música da Orquestra Sinfônica Brasileira, onde as aulas aconteciam no teatro João Caetano (RJ) com o professor Norton Morosovinski. Nesse meio tempo fiz até curso de teatro e me profissionalizei, inclusive, como ator. Quando eu completei 20 anos, no entanto, decidi parar totalmente com o teatro e me dedicar à música por completo.
M&T: E a partir de quando você se tornou um profissional da música?
Ariel: Profissionalmente, comecei tocando flauta e choro. Havia um barzinho aqui em Botafogo chamado Cantinho da Fofoca, considerado um dos redutos do choro na cidade e foi lá que eu conheci várias figuras tradicionais como, por exemplo, o "tio" Alcides, que tocava pandeiro; o Careca, um estivador do cais de porto com o seu violão de seis cordas; além de um japonês no cavaquinho... E foi lá também que eu encontrei o Zé Renato, Juca Filho, o bandolinista Marco Aurélio e Damilton Viana que, mais tarde, se tornaram meus companheiros no grupo Cantares, meu primeiro trabalho profissional. Isso aconteceu em 1976.
M&T: Como foi o Cantares?
Ariel: Foi bem legal. Nós participamos do Projeto Vitrine, da Funarte, o que nos deu o direito de gravar um compacto duplo. O grupo permaneceu de 1976 até 1979, quando o Zé Renato foi convidado a participar do Boca Livre. Na época, todos ficaram revoltados com a saída dele. O meu período no Cantares, no entanto, não impedia que eu mantivesse os meus estudos com o piano e tocasse flauta com artistas como Cartola e Teresinha de Jesus. Também tive a oportunidade de tocar com a cantora Eliana Pittman e com o pessoal da Black Rio (a última formação da banda) quando o tecladista deles, o Jorjão, saiu para acompanhar Gal Costa.
M&T: Depois veio o Usina, não foi?
Ariel: Foi sim, nós formamos o grupo Usina. Eu ficava no piano e na flauta, Zé Nogueira no saxofone, Antônio Santana no baixo, Joca Moraes como o baterista, Ricardo Silveira na guitarra e, mais tarde, Vitor Biglione substituindo-o.
TRABALHANDO NO EXTERIOR
M&T: Como surgiu o seu selo Humaitá Music?
Ariel: Bem, eu nasci no bairro do Humaitá, no Rio de Janeiro. E foi justamente lá que eu montei um dos primeiros estúdios de ensaio do Rio, em um galpão no fundo da casa dos meus pais. Era o "Estúdio do Ariel", como diziam. O primeiro a utilizá-lo foi o Alceu Valença, em 1979, depois vieram o Djavan, Caetano Veloso, Milton Nascimento, até o Pat Metheny fez uma audition lá para achar um percussionista e saiu o Marçalzinho... O selo veio dessa influência do bairro. E depois, Humaitá Music é também o nome da minha editora nos EUA.
M&T: Atualmente, a sua carreira internacional (principalmente nos EUA) já está bem consolidada. Como tudo isso começou?
Ariel: Tudo começou em 1989 quando eu lancei, pela primeira vez, o CD "Terra do Índio", nos Estados Unidos. Este trabalho foi eleito por uma revista americana como um dos melhores lançamentos de jazz. Em seguida, assinei contrato com a Nova Records para lançar o "Rhapsody in Rio", um duo com o Altolfe Mário, saxofonista contemporâneo de Vitor Assis Brasil, na Berklee. O que para mim foi uma honra! Afinal de contas, eu me lembrava das vezes em que eu fui no Chico's Bar assistir Luizinho Eça e o próprio Vitor tocarem. Assis me convidava para sentar ao seu lado no banco do piano e eu ficava lá vendo aqueles gênios muitas vezes rearmonizando as músicas naquele exato momento. Atualmente, eu sou artista exclusivo dos EUA para o mundo todo pela gravadora Paras Recording Company (PRC), e eu estou proibido de fazer qualquer coisa para fora do Brasil se não for com eles. Meu mais recente lançamento lá (foi no último dia 10 de novembro) foi o "Magic Eyes". Mas a minha discografia inclui ainda o "Hand Dance", gravado no estúdio do Chick Corea, "Piano", com produção de Liminha, "Bambu", primeiro trabalho independente, "Balé Sertanejo", gravado na Sala Cecília Meireles, entre outros. Ao todo já se somam 17 trabalhos fonográficos.
M&T: Quando foi que "Piano com Tom Jobim" começou a tomar forma? É verdade que isso aconteceu quando você gravou aquele seu CD "Piano", pela Visom?
Ariel: Bem, eu sou um fã do Carlão de Andrade porque ele foi uma das primeiras pessoas a trabalhar com música instrumental. Um dia eu liguei para ele e contei que estava interessado em gravar um CD solo em piano. Foi aí que eu gravei três músicas do Tom: "Olha Maria", "Luiza" e o "O Choro". Quando eu cheguei nos EUA, em 89, vi o quanto a música dele era popular e se as pessoas descobriam que eu era brasileiro, vinham logo me pedir para tocar alguma coisa do Tom. Por isso comecei a esmiuçar mais a música dele, e a minha idéia veio amadurecendo com o tempo.
M&T: Você diz que se lembra da primeira vez que viu o Tom...
Ariel: Pois é, eu tinha uns 15 anos de idade e estava indo para a praia junto com um tio quando decidimos parar em um bar. Tom também estava lá. Meu tio disse, apontando-o: "está vendo aquele cara ali? É o Tom Jobim, aquele da bossa nova!". De camisa social largada, sandálias e tomando um chope. Mais tarde, em 1992, eu vim conhecê-lo pessoalmente, ser apresentado a ele e conviver com Tom, quando ele fez um show no Hollywood Bowl, em Los Angeles, com a presença de cerca de 20 mil pessoas na platéia. É ótimo quando você já é fã da obra e descobre que se trata de uma pessoa realmente incrível...
M&T: Não deve ter sido nada fácil escolher 13 músicas para compor o CD... Como você as escolheu?
Ariel: Eu cheguei naquelas que eu mais gostava mesmo. Algumas eu, com certeza, não tinha a menor dúvida que deveriam entrar. Como, por exemplo, "Olha Maria", uma música pianística linda e envolvente, "Luiza"; "Retrato em Branco e Preto"; "Samba de uma Nota Só", onde eu gosto de brincar muito com o ritmo; "Lígia", "Samba do Avião"... E depois foi só juntar com aquelas mais pedidas durante os shows, tanto no Brasil quanto nos EUA.
M&T: O fato de você ter escolhido o estúdio AR (RJ) foi por algum motivo em especial?
Ariel: (risos) Ah, você já sabe porque! Primeiro porque lá tem o piano no qual o Tom Jobim mais gostava de gravar aqui no Brasil. O instrumento ficava, antigamente, no estúdio Transamérica mas depois o AR tratou de comprá-lo. E esse disco tem mais um detalhe - eu o gravei em uma noite apenas, praticamente direto, só repetindo algumas músicas. Cheguei lá às oito da noite e saí às cinco da manhã do dia seguinte. Foi um disco muito preparado porque eu já vinha estudando os arranjos em casa, mas a parte de improvisos foi feita, é claro. Decidi que quando eu entrasse em estúdio seria para tocar emocionado como se o público estivesse ali. E o resultado foi ótimo - sonoro, musical, artístico...
PIANO COM TOM JOBIM
M&T: Quais foram os seus principais colaboradores nesse projeto do Tom?
Ariel: Os arranjos são todos meus, com exceção de "Inútil Paisagem", que teve o arranjo de Vitor Biglione, e ainda de "Olha Maria" e "O Garoto", que foram de Eumir Deodato. Houve também a participação da minha esposa, Helena Rego Monteiro, que fez toda a produção comigo; do Hospital Pró Cardíaco; de um dos maiores engenheiros de som do Brasil que é Eduardo Chermont; de Arthur Fróes, responsável pela capa do disco; e do meu filho Lucas Barcelos, que foi o assistente de gravação.
M&T: Qual a sua relação com a tecnologia?
Ariel: Sinceramente, eu estou muito mais ligado à composição, ao piano e à flauta. Por isso mesmo eu tenho dois parceiros que me auxiliam muito: Eduardo Chermont de Brito e João Batista. Além de dois grandes técnicos de áudio, eles ainda são músicos. A primeira vez que eu gravei na Sala Cecília Meireles foi usando aquele gravador Nagra, depois veio o ADAT, e agora o Pro Tools, que eu acho um dos maiores inventos a serviço do músico. Na minha opinião, outra coisa genial que aconteceu foi a evolução do piano digital. Porque eu sou da época de carregar um Fender Rhodes por aí nas costas, depois o CP70, da Yamaha... Agora já é possível você ter o conforto de um som quase 100% igual ao do piano acústico com a versatilidade de transportá-lo.
M&T: Fale-me dos seus instrumentos.
Ariel: Tenho a linha elétrica da Kurzweil, teclados mais leves (além da resposta do som!), e que me facilitam muito já que faço shows intimistas em vários lugares. Uso o PC78 e em uma versão ainda mais prática - o PC76. Para gravar as minhas coisas também utilizo um MD.
M&T: Como você vê a atual situação da música instrumental no Brasil?
Ariel: Bem, eu tive um programa durante dois anos, de 1997 a 1999, na Rádio Globo FM, o "Nota Jazz". Antes, é claro, da decisão de retirar a música instrumental das rádios. Comparo essa situação a uma espécie de ditadura cultural. Há a Escala FM, tudo bem, mas que também não tem um perfil definido. Acredito que as pessoas tenham o direito de decidir o que querem ouvir. Lá fora a música instrumental encontra a abertura que não encontra aqui, minhas músicas tocam nas rádios. As empresas nacionais poderiam encontrar um formato que fosse interessante comercialmente e também para o público. Apesar disso, alguns festivais de música instrumental começam a pipocar por aí, mas todos organizados pelos próprios músicos. Como eu fiz com o primeiro RioArte Instrumental e depois com o Rio & Choro, no Ballroom.
M&T: Quais os projetos que o envolvem atualmente?
Ariel: São a divulgação do meu selo (Humaitá Music) e o meu contrato nos Estados Unidos, ou seja, continuo na ponte Rio - Los Angeles. Para um futuro próximo, ou seja, já em 2001, além de gravar mais um disco para os Estados Unidos, há ainda um projeto com músicas infantis, onde não só componho música mas também letras. Mais para frente há um trabalho que venho estudando sobre temas de jazz misturados a um molho carioca de samba e choro, e ainda o volume 2 do meu disco sobre (a cidade de) Visconde de Mauá. E quem sabe, um CD com choros para flauta? Ah, quando o Luciano Alves soube que eu tinha feito um CD com as músicas do Tom, ele já me ligou convidando para fazer um songbook só com os meus arranjos para a Irmãos Vitale.
M&T: A composição é algo a que você se dedica muito, não é verdade? Como ela acontece?
Ariel: É tudo muito intuitivamente. Vai nascendo. Eu, por exemplo, tenho uns choros para piano de bastante dificuldade, difíceis de tocar, e muitos deles surgiram quando eu estava no meio de um estudo técnico do instrumento. Tenho também algumas composições da minha época de estudante em que eu nem entendia muito da harmonia, mas que é justamente o que o Zé Nogueira me disse certa vez - "a composição da caixa de fósforo". Acho genial toda essa tecnologia surgindo mas quem precisa usá-la é a sua sensibilidade e espontaneidade.
M&T: E a música instrumental está trazendo novos nomes?
Ariel: Claro que está. Há o André Neiva, Kiko Furtado, Marcelinho Martins, Victor Santos, o reaparecimento de Cláudio Daulsberg , entre muitos outros. Também já ouvi dizer que há muita gente nova tocando choro. É uma geração muito legal e que precisará fazer o que nós fizemos na nossa época - abrir caminho para os outros. Eu vejo o meu filhinho pequeno, o Diego, e percebo que ele já quer tocar, ele gosta. É isso mesmo o que o músico sente - fica meio bobo diante do instrumento, da música. E quando vários músicos se juntam? Um mostra para os outros o "brinquedinho" novo: "olha aqui o meu amplificador!" Música é isso.