É fácil ficar surdo. Engana-se quem acha que somente um profissional de áudio ou um músico com anos de profissão corre este risco. Pouco tempo de exposição a um alto nível de decibéis já é o suficiente para a aparição dos primeiros danos ao sistema auditivo de uma pessoa, sejam eles provocados pelo barulho de um liquidificador, de uma caixa acústica ou de um rojão. Por isso, entidades tão diferentes como o Inmetro e a AES apresentam preocupações com o problema. O uso de plugs está cada vez mais difundido entre técnicos de PA e monitor, e o advento do ear monitor agora permite um maior controle do volume que entra no ouvido dos artistas. Mas a consciência a respeito do problema veio tarde demais, e muitas das pessoas que usam os plugs e ear monitors, atualmente, já apresentam algum dano auditivo. Ozzy Osbourne, Gilberto Gil e Pete Townshend são alguns exemplos, que perceberam tarde demais a agressão à qual acabaram se submetendo durante várias décadas de palco.
A OBRIGAÇÃO DE OUVIR ALTO
Somadas as pessoas que freqüentam discotecas, os músicos de bandas de rock, de orquestras, os técnicos de PA e monitor, os foliões do carnaval nordestino e dos infames carnavais fora de época, o número de candidatos a surdez deve chegar a alguns milhões no Brasil. Todos eles geralmente estão submetidos a mais de uma centena de decibéis durante várias horas e, muitas vezes, não se importam com o zumbido que assola suas cabeças depois de uma noite de diversão ou trabalho. Não que o destino de todas estas pessoas seja a surdez absoluta, mas é possível que com o passar dos anos sua audição deixe de ser perfeita.
Em uma boate, por exemplo, o nível de pressão sonora pode chegar a 130 decibéis, e afeta ainda mais quem estiver perto das caixas, durante um tempo prolongado. É mais ou menos o que acontece nos trios elétricos, em que uma massa de pessoas de acotovela na área limitada pelas cordas e se submete aos mesmos 130dB durante várias horas. No carnaval, o estado alterado das pessoas ainda é um agravante, que diminui a sensibilidade auditiva. Resultado: os foliões que bancam (compram os abadás e desfilam no trio) o carnaval baiano reclamam do som "baixo" na frente dos trios, e quem leva o prejuízo maior são os técnicos de áudio, obrigados a atender aos pedidos insanos. "Por incrível que pareça, os associados que compram o abadá reclamam quando o som não está alto. Às vezes, um cara quer estar na ponta do trio (na frente) e ouvir aquilo com a mesma pressão", critica Carlos Correia, consultor de áudio da Selenium. Ele tem experiência como técnico de PA e conta quais as conseqüências para os profissionais depois de atender a estes pedidos. "A gente tem que obedecer. Então, às vezes, quem é multado é o técnico. Para as pessoas em geral, o técnico é um cara desnorteado que aumenta aquilo pelo seu bel-prazer. Ele, na verdade, é um funcionário. As pessoas que estão envolvidas no carnaval estão ali porque querem; e eu estou ali porque preciso trabalhar". Vale lembrar que o limite de pressão estabelecido pela prefeitura em Salvador é de 110dB para trios elétricos.
PROBLEMAS POS-BARULHO
A exposição longa a sons muito altos não prejudica somente o sistema auditivo de uma pessoa. Já que os batimentos cardíacos se aceleram, o sistema circulatório também é afetado. Com isso, a pessoa fica mais vulnerável a dores de cabeça, hipertensão, tonturas e insônia. Estes são apenas sintomas que não afetam ninguém, definitivamente. E entre os sintomas, o tinitus é um dos mais comuns, que tem a ver com audição diretamente. O barulho - que pode ser um apito, zunido ou mesmo semelhante ao ruído de uma cachoeira - permanente na cabeça é causado por diversas razões que, muitas vezes, passam longe pelos ouvidos humanos, como o excesso de cafeína, o abuso de analgésicos e o acúmulo de cera no canal auditivo. Contudo, a causa mais comum deste sintoma é mesmo a exposição prolongada a sons altos. O tinitus pode ser percebido em ambientes silenciosos e, se muito forte, pode ser escutado permanentemente, seja qual for o lugar em que a pessoa esteja.
As perdas auditivas podem ser definitivas ou temporárias e acontecem pelas mais diferentes razões, desde a ruptura do tímpano à lesão de células nervosas. Com picos de ruído de 140dB ou maiores, o tímpano pode ser rompido. Mas de acordo com o tempo levado para restituir a membrana e se outras partes do ouvido foram afetadas, a pessoa pode recuperar sua audição. Caso contrário, a perda pode ser imediata e permanente. Quando as células sensoriais do ouvido interno (uma das áreas do canal auditivo) são lesadas, começam a ocorrer perdas progressivas, que se não forem tratadas podem ser irreversíveis.
Esses zumbidos são causados por agressões sofridas pelo sistema neuro-sensorial auditivo, que atingem desde as células receptoras da cóclea até os neurônios do córtex cerebral, acarretando disfunção temporária ou permanente nessas estruturas. Estes problemas levam à disfunção do órgão de Corti, estrutura do ouvido interno capaz de transformar a energia mecânica dos estímulos auditivos em energia elétrica que será percebida pelos nervos. As sinapses neurais da cóclea (área do ouvido interno responsável pelo equilíbrio) e do nervo acústico também são prejudicadas, e acarretam alterações transitórias ou permanentes nas estruturas auditivas do sistema nervoso central. Quando a situação já acarretou uma alteração estrutural do sistema auditivo, o zumbido permanece como seqüela.
A perda auditiva induzida pelo ruído (PAIR) é um dos traumas mais comuns sofridos pelos músicos e profissionais de áudio. Segundo o Comitê Nacional de Ruído e Conservação Auditiva, a PAIR traz a diminuição gradual da acuidade auditiva, decorrente da exposição contínua a níveis elevados de ruído. Os primeiros sinais da PAIR aparecem nas freqüências entre 3000 e 6000 Hertz, e quanto mais a lesão se aprofunda, as freqüências atingidas se expandem e chegam a 8000, 2000, 1000, 500 e 250 Hz. A pessoa que adquire este tipo de perda pode ter a sua inteligibilidade de fala prejudicada, assim como se torna intolerante a sons mais fortes. O único meio de impedir a progressão desta patologia é diminuir a exposição da pessoa a barulhos intensos. Mesmo assim, dependendo do tipo de ruído, do seu espectro e nível de pressão, a exposição não precisa ser longa para que já deixe um grande prejuízo.
EM SOCORRO DOS OUVIDOS
Para quem não pode evitar a exposição nada saudável às altas pressões sonoras, os plugs de ouvido aparecem como uma salvação providencial. Kalunga, técnico de PA de Ivete Sangalo, conta que já presenciou uma platéia utilizando os protetores em um clube noturno de Nova York. Cena impensável na maioria dos shows e apresentações que sujeitam o público a um nível absurdo de SPL. O plug em questão era o Hi-Fi, com uma atenuação média de 15 decibéis. Hoje em dia, é possível encontrar no mercado plugs com até 36dB de atenuação - e o mais importante - em todas as freqüências. É comum que diversos protetores apresentem cortes apenas nas altas freqüências; mas modelos como o ER9, ER15 e ER25 têm atenuação em todas as freqüências, e não atrapalham o usuário em conversas e na realização de outras atividades do dia-a-dia. Estes filtros da empresa americana Westone Labs podem ser utilizados nos plugs feitos sobre medida (com exceção do ER20, que já é um plug com filtro), através de moldes do canal auditivo que os interessados mandam para lá. "O Musician Ear Plugs ES49 é o meu próximo plug. Ele funciona dentro do canal auditivo e na ponta você tem como escolher os filtros que coloca. Isso é o que há de mais moderno de proteção para quem trabalha com música", opina Kalunga, que dentro em breve vai mandar o seu molde para os Estados Unidos. Ele também faz uso do Alpine com atenuação de 25dB, que conheceu na AES há alguns anos atrás. "Eu começo a mixar o show, e depois de cinco ou seis músicas - o tempo em que estou a 100, 105dB - eu coloco o plug. Aí eu caio para um volume bom. E dá pra mixar porque ele não tampa, não causa aquela sensação de estar entubado, não dói o ouvido e dá condições de trabalho".
Carlos Correia, da Selenium, usa plugs até dentro do carro, quando não levanta o vidro no trânsito. No laboratório da empresa, ele trabalha também na câmara anecóica, onde sempre está com o filtro; mesmo quando vai a uma marcenaria, ver a montagem de um PA, ele faz uso dos plugs de ouvido. "Eu uso o filtro da Norton. É uma empresa que fabrica produtos de segurança industrial. Este filtro custa uns 10 dólares. Existem outros até melhores do que estes", conta Carlos. De fato, há outros melhores, mas estão no mercado a preços exorbitantes. Até porque na maioria dos casos são encontrados somente no exterior e, se importados, têm que se submeter às oscilações do nosso câmbio altamente confiável. Um modelo ER25, da Westone, com atenuação de 25dB não sai por menos de 650 dólares. O objeto de desejo de Kalunga, o ES49, está entre 162 e 174 dólares - isso porque ele vem sem o filtro, que ainda deve ser adquirido em separado. Preço de um dos filtros? ER9, ER15 ou ER25: US$37.
Quanto à prevenção, o par perfeito para os protetores de ouvido é a audiometria. O exame deve ser realizado de seis em seis meses, mas nem todos os aparelhos que fazem a audiometria medem as faixas abaixo de 150Hz e acima de 8000Hz, que são utilizadas sempre no trabalho de técnicos de PA, monitor e nos CDs. Em Salvador, Lázzaro de Jesus, técnico de monitor de Ivete Sangalo, conseguiu encontrar um médico com a aparelhagem necessária para medir estas faixas; ele faz o exame duas por ano e até agora não detectou nenhum problema sério, além de uma pequena perda em médias e altas freqüências. "Eu tenho esta perda em médio-grave porque, na época em que eu comecei a trabalhar, se testava caixa ouvindo", conta ele que está no mercado há 16 anos.
Hoje, Lázzaro participa ativamente de um grupo de discussão de áudio recém fundado em Salvador. O Grupo Estude Áudio conta com nove participantes e foi fundado depois do primeira Convenção Regional da AES, realizada na cidade. Eles pretendem estender e ampliar a discussão sobre diversos temas relacionados ao áudio, inclusive as orientações sobre o cuidado dos técnicos com a sua audição. Com o ear monitor, esta discussão se ampliou mais ainda já que o fone pode ser menos agressivo para o músico do que os tradicionais monitores de chão. Entretanto, ainda não existe um modo de medir o nível de pressão sonora que entra no ouvido do músico, quando do uso do in-ear; a medição dos decibéis é feita geralmente a um metro de distância do fonte sonora. Por isso, um dos conselhos de Lázzaro para os músicos é que eles também façam a audiometria, de modo que se alguma perda ou trauma for identificado, o técnico de monitor esteja a par para fazer os ajustes necessários na horas de passar o som para o artista no palco. "Vendo que o músico tem aquela deficiência, você já ajusta a equalização para suprir aquela falta", explica Lázaro. Ele nunca soube de alguém que tivesse um dano provocado por um volume alto ou desajustado no in-ear, mas deve-se ficar atento para esta possibilidade sempre, já que ela pode ser mais agressiva do que um dano provocado por uma caixa no chão.
PARA QUEM OUVE MÚSICA ALTA QUANDO QUER
Aqui vão algumas dicas que podem evitar problemas para quem não é obrigado a lidar com ruídos intensos quase que diariamente, aqueles que são assíduos convidados de eventos culturais barulhentos, sejam eles trios elétricos, discotecas, shows...
- Evite ficar perto das caixas de som. Tente manter uma distância de no mínimo dois metros;
- Tire intervalos de meia hora fora do local onde o barulho é mais alto. Qualquer lugar onde o nível de pressão esteja abaixo de 90dB pode dar um bom descanso para os ouvidos.
- Alta temperatura conjugada com ruídos intensos afetam ainda mais o aparelho auditivo. A hidratação com água ajuda a evitar uma exaustão metabólica que pode contribuir para danos no aparelhos auditivo.
- Existem diversos medicamentos chamados ototóxicos, isto é, tóxicos ao aparelho auditivo. Para quem se submete constantemente a volumes altos, vale dar uma olhada na bula dos remédios ou consultar um especialista.
- O plugs mais caros são os indicados para profissionais. No mercado existem outros a preços bastante razoáveis. Portanto, não use algodão, papel higiênico ou nada parecido em hipótese alguma.