Durante muito tempo, achei que a transição do estúdio analógico para o digital jamais terminaria. Por mais interessante que gravar em sistemas de hard disk possa ser - devido a questões como rapidez, nenhum ruído, nada de crosstalks (vazamentos entre canais adjacentes) e economia de tempo de shuttle (voltar a fita) - a falta de padronização fazia com que um projeto iniciado em um determinado estúdio tivesse que se hospedar lá até o último dia. Sozinho, esse fato já era suficiente para fazer o sistema digital ser apenas um acessório na maioria dos grandes estúdios.
Projetos maiores tinham que contar com a possibilidade de gravar bases em um estúdio com uma sala incrível. Isso incluía a possibilidade de trabalhar overdubs (geralmente em estúdios variados), solos em um determinado estúdio (talvez pertencente ao próprio músico), cordas em Londres, voz sei lá onde e, geralmente, mixagem em um estúdio que não tem sequer aquário.
Um estúdio abarrotado de periféricos, monitoração invejável e uma mesa de virar a esquina (com muitos canais). Isso se fazia possível porque tudo o que se precisava fazer era colocar o rolo de fita de 24 canais embaixo do braço e ir para outro estúdio. Chegando lá, alinhava-se a máquina para os tones do projeto, a fim de que os gravadores ficassem com os níveis de reprodução de gravação compatíveis, e era só apertar o rec-play.
Todos os estúdios de grande porte tinham um gravador de 24 canais de duas polegadas. Esse era o padrão. Vários fabricantes faziam fitas (Ampex, 3M, Basf etc); outros fabricavam máquinas de gravação (Sony, MCI, Otari, Studer, Soundcraft, Tascam, e, nos velhos tempos, Ampex). As mesas de gravação eram fabricadas por SSL e Neve, que dominavam o mercado das altas cifras. Estúdios particulares de músicos e produtores tinham consoles menos caras, como Soundcraft, Allen & Heath, Otari, Soundtracks, e mais tarde, Mackie. Mas sempre um projeto iniciado em um estúdio poderia seguir em outro - por qualquer que fosse o motivo.
Então os computadores foram invadindo nossas vidas, ficando bem divertidos, e começou uma enxurrada de softwares de áudio e sistemas fechados, como o Radar, da Otari. Porém, eles ainda não eram tão estáveis nem totalmente compatíveis entre si. Como eram muito diferentes, era praticamente impossível saber operar todos. Assim, ir de um estúdio a outro era como mudar de idioma. Por isso, os estúdios não se apoiavam nesses sistemas.
Por vários motivos, a Digidesign foi ganhando campo com o Pro Tools, que foi se tornando um padrão. O programa realmente é de tirar o chapéu. Mas ainda que hoje tenhamos formatos de áudio padronizados, como AIFF, muito usado nos Macs, Wave, criado pela Microsoft, SDII (Sound Designer II), criado pela própria Digidesign como o formato de áudio original do Pro Tools, não temos um formato padrão de sessões. Ou seja, é possível levar um track inteiro de uma sessão em um programa de um determinado estúdio para outro, usando computadores e programas diferentes. Mas isso não vale para toda a sessão, com todos os pedacinhos de áudio em seus devidos lugares na música.
Quando falamos em sessão, incluímos vários elementos: o áudio, onde ele se encontra na música, os endereçamentos, os plug-ins e a mixagem. É claro que, quando comparamos com a exportabilidade da fita de 24 canais, podemos até argumentar que só dava pra levar os tracks e mais nada. Mix, plug-ins, nada disso poderia entrar. Mas paciência. Se temos a sessão, que agora inclui isso tudo, devemos poder exportar e importar em outro estúdio.
Está bem, estamos dizendo que qualquer estúdio hoje tem Pro Tools e qualquer Pro Tools pode abrir qualquer sessão de qualquer outro Pro Tools. Só que não são todos os estúdios que têm o Pro Tools, e os que não o têm não abrem as sessões. A menos que o dono do Pro Tools em questão tenha um software de tradução de sessões, o que é raro. No entanto, o Pro Tools, definitivamente, não pode ser considerado um padrão. Além do mais, se fosse padrão, a tradução não seria necessária.
A Digi, como chamam, é sensacional, mas não podemos chamar de padrão uma determinada marca, e sim uma linguagem específica. Até mesmo os gigantes têm concorrência. Basta ver Neves e SSLs, Mercedes e BMWs. Essa concorrência, aliás, é o que faz com que eles se tornem gigantes.
É como se surgisse um carro sensacional, luxuosíssimo, mas que só andasse em suas próprias estradas, com seu próprio combustível. Isso não seria padrão. E, se todo mundo comprasse esse raio desse carro e ele virasse padrão, os outros fabricantes iriam ter que adotar esse combustível e esse padrão de estradas.
Você sabe do que estou falando...
Até o mês que vem.
Enrico De Paoli é engenheiro de áudio de estúdio e PA. Projetos recentes incluem o novo disco do Titãs à convite de Liminha e Vitor Farias; PA do evento Petrobrás com Ana Carolina, Fernanda Abreu e Ivete Sangalo e PA do Nando Reis. E-mails para:
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