Uma soma de fatores positivos: a impossibilidade moral de adesão ao agora obrigatório carnaval de rua no Rio de Janeiro, meu aniversário de casamento com a patroa e um milagre de milhagem na época mais concorrida do ano acabaram me levando a uma temporada especialíssima na Cidade Luz em seu mais rigoroso período de inverno esse ano.
Se você, leitor, é um daqueles (como eu mesmo) que torcem o nariz para as possibilidades musicais e tecnológicas da França, embarque comigo nessa viagem, pois a cidade surpreende pela quantidade, qualidade e originalidade das opções que oferece a músicos que procuram coisas novas e não apenas o "mais do mesmo".
Paris pode ser mais restrita em relação a notórios centros musicais como Nova York, Londres e Tóquio, mas você encontra instrumentos e equipamentos de estúdio europeus ultramodernos ou vintage de altíssima qualidade, lugares incríveis para conhecer música do mundo inteiro, excelentes salas de concerto onde se apresentam orquestras e solistas do primeiro time europeu, música eletrônica original (Air, Justice e Daft Punk vêm de lá mesmo) e uma infinidade de possibilidades sonoras trazidas pelos africanos e árabes que não param de chegar na França desde os anos 1980.
Tudo isso sem ter que comer aquela gororoba medonha (sejamos honestos, não é leitor?) das delis americanas ou dos gosmentos fish and chips ingleses, e sempre com a participação valiosa do vinho e do champagne "nacionais".
A informação musical que se propaga vinda da América e da Inglaterra, seja ela sobre criação, produção ou tecnologia, parece ter maior pressão na mídia e chega mais facilmente até nós, mas nem por isso os franceses estão de bobeira, como mostram os synths virtuais e de hardware da Arturia e os plug-ins da Ohm Force e da Flux.
Allons-y, leitor?
EQUIPAMENTOS E TECNOLOGIA
Nos anos 1980, as lojas de música de Paris se resumiam a um quarteirão no tradicional Pigalle, bairro boêmio e etc. (e bota "etc" nisso!), que, por abrigar historicamente muitos nightclubs, acabou se tornando ponto de músicos e comércio de instrumentos.
A Star's Music (que existe até hoje) era o melhor lugar de lá, e durante uma excursão com Moraes Moreira, em 1985, peguei o metrô (outra coisa que funciona maravilhosamente bem em Paris!) todo animado para comprar um Yamaha DX7. Chegando lá, para minha decepção, descobri que havia uma fila de espera de dois meses para adquirir o teclado. Apesar disso, eles tinham em estoque um DX9 com quatro operadores, em vez dos seis do DX7, e eu achei que era melhor levar aquilo do que nada. Não pude testar coisa alguma na confusão que se instalava na loja e, com a ajuda de meu companheiro de quarto, o percussionista Carlinhos Ogan, que também havia comprado um instrumento, pegamos juntos o táxi mais caro do mundo e voltamos ao nosso hotel no Hausman Boulevard. Com a ajuda do lendário tecladista Zé Américo, raspei o "9" do nome do teclado para que ninguém notasse que não era o teclado "obrigatório" da época, e sim um outro bem parecido. A juventude tem muitas facetas, certo, leitor?
De qualquer forma, as lojas continuam lá e o Pigalle ainda guarda um ranço meio boêmio e marginal que, se for do gosto do meu leitor, não critico, mas muito melhor é a Univers Sons (www.univers-sons.com), na Republique, que tem um bom estoque e preços como o resto da Europa. O leitor deve sempre ficar atento ao fato de que as tomadas (assim como o teclado dos computadores) francesas são de um padrão específico de lá que não tem nada a ver com o padrão americano, inglês (graças a Deus) ou brasileiro, com a tomada de três pinos, uma "inovação tecnológica" que, se fosse boa, teria sido adotada em outros lugares do mundo...
Seguindo a tendência mundial, a quantidade de lojas físicas diminuiu bastante com a avalanche de dealers via internet, e se seu passaporte é brasileiro e você está comprando algo acima de 100 euros, não se esqueça de pedir o formulário de isenção de impostos da comunidade europeia, que equivale a cerca de 20% do valor da mercadoria.
Não é o que eles mais gostam de fazer, não é pago a você ainda na loja, como no Japão e na Grã-Bretanha, e enche a paciência ficar numa fila no aeroporto, no dia de seu voo de volta, com um envelope que tem que ser preenchido certinho pelo vendedor com seus dados e os dele. Daí, você entra em outra fila para ser carimbado pelo fiscal da aduana e coloca numa caixa postal, com o endereço da loja onde comprou o equipamento, para que eles lhe reembolsem.
Parece chato, e é, mas na época do PayPal e do cartão de crédito internacional, a coisa funciona muito melhor do que nos tempos em que o oficial da alfândega, ao receber o documento, lhe perguntava a sua conta bancária na França. Quando você respondia que não tinha, por ser brasileiro, recebia um caprichado "desolée" (que embora signifique "desculpe", é o equivalente francês a "f***-se") e o dinheiro ficava lá pela Europa mesmo. A maturidade tem algumas vantagens, não acha leitor?
Para quem é "freak" de equipamentos vintage e menos mainstream e curte teclados de várias procedências e possibilidades, os franceses oferecem a Modular Square (www.modularsquare.com), que na internet mostra um inventário incrível de teclados europeus, inclusive os monofônicos, que voltaram com tudo à ordem do dia (veja o box). Eu, apesar dos justos protestos de minha adorável esposa ("ainda cabe mais alguma coisa no seu estúdio?"), não poderia deixar de conferir.
Depois de muito fuçar a web, estava entre o Vermona PerFourmer, o Doepfler Dark Energy, o escocês Micro Mac e os alemães da MFB, com destaque para o Dominion pela sua variedade de filtros e um componente que embora faça puristas torcerem o nariz, é fundamental para mim: preset memory!
Queria ouvir o som deles e escolher o melhor dentro de um preço razoável, e fiquei tentando armar testes para nosso deleite, leitor, mas no terceiro e-mail o cidadão da Modular Square me mandou "seguir a loja pelo Facebook e pelo Twitter para saber quando os instrumentos estariam disponíveis", uma vez que ele não podia me dar uma previsão exata.
Revoltado, entrei em contato direto com a fábrica MFB, do Dominion, e perguntei a eles se havia outra maneira de comprar o instrumento deles na Europa sem ser pela Modular Square. Indicaram como distribuidor o Schneiders Buero (www.schneidersbuero.de), que é, de fato, o maior parque de diversões Kraftwerk. E os caras estão em Berlim, que é bem perto de Paris.
Fiz contato com os alemães, e eles foram tudo de bom: rápidos, objetivos e até bem-humorados. Dispuseram-se a mandar para o meu hotel em Paris em dois dias a partir da compra, mas infelizmente não me aliviavam dos impostos da balançante União Europeia. Como o transporte custava 12 euros, fingi que o imposto era o "packaging e sending" de outros dealers que se fingem bonzinhos. Dois dias depois de passar o número do meu cartão de crédito por telefone para um alemão genérico, mesmo sendo sábado, meia hora antes do que o tracking do Fedex me mostrava, o telefone do meu quarto tocou com a voz francesa do recepcionista Rachid gastando seu melhor inglês para me avisar da chegada da encomenda!
Para equipamento de estúdio, o lugar mais especializado e variado é a Funky Junk (www.funkyjunkfrance.com), na verdade, uma oficina de reparos que também vende e até cria equipamentos analógicos, pré-amps, periféricos e tudo aquilo que faz o músico ficar contente de ver e ouvir, como um pinto no lixo. Veja as fotos, saiba que a matriz é na Inglaterra e deve ser de lá que vem esse mundo de equipamentos analógicos usados, recondicionados ou novinhos para você estropiar seu cartão de crédito. Fui na loja num subúrbio de Paris, e os caras fumam Gauloises da pior espécie dentro da oficina, mas são atenciosos e o Cédric-Olivier, que me atendeu, já quer até vir para o Brasil assistir a Copa em 2014. Ser jovem, é maravilhoso, não acha, leitor?
Meu objetivo era um pré-amp mono para gravar instrumentos acústicos individuais para trabalhos de trilhas sonoras e pré-produção em meu estúdio. Na faixa de preço que me interessava, foram sugeridos o BAE 1073 DPD (clone inglês do Neve), o Warm Audio analógico e o Neve 1073, e eu pedi para testarmos também o Portico 5017, do Rupert Neve, que embora fabricado na América, era o "mais Neve" que meu dinheiro podia pagar, mais compacto para transportar em viagens e mais fácil de ser colocado no meu estúdio. Ganhou pelo som, pois o BAE emitia um grave muito perto de hum (sem querer ofender ninguém), o 1073 original é estéreo e bem acima do que eu podia pagar e o Warm Audio não disse a que veio - tinha um som bem fraquinho.
O Portico 5017, se necessário, grava linha e mic simultaneamente, tem compressor, se você quiser usar, e um ganho de mais de 66 dB, além de um controle "silk" que dá um charme ao momento atual de vida de mais um dos grandes criadores de tecnologia musical que teve que vender o nome para pagar dívidas, como Robert Moog, Tom Oberheim, Dave Smith (Sequential) e Roger Linn.
O vendedor da Funky Junk preencheu direitinho o formulário de isenção de taxas para não-europeus, me deu uma carona até a estação de metrô mais próxima e segui daquele subúrbio para o Marais, lugar cult de Paris, para almoçar bem mais feliz do que nos anos 1980 com o meu DX9.
Vou fazer essa pausa para almoço agora. E como na França as refeições são maravilhosamente demoradas (o que inclui o vinho "nacional" que bate um bolão nesse frio), continuamos nosso tour no mês que vem, antes que meu implacável editor se aborreça com tantos adjetivos e espaços ocupados.
À bientôt, leitor!
MFB DOMINION X
O leitor que acompanha as tendências tecnológicas do mundo dos teclados já deve ter percebido a grande febre de teclados monofônicos e orientados para a performance ao vivo ou em estúdio como arma de combate ao som mais clínico e higiênico dos virtuais. Muitos já notaram que até a "sujeira", "distorção" e "saturação" digitais são bem comportadas, e, por isso, os fabricantes dos analógicos de hardware não param de atentar contra a conta bancária de pobres músicos ávidos por novas formas de expressão (e também para serem os "primeirões" das paradas!).
O Moog Minitaur, que na opinião da minha esposa é de uma inutilidade total por ser direcionado apenas a sons graves (nada acontece acima do C5), o francês Arturia Mini Brute, com sliders e filtro Steiner Parker, os relançamentos atualizados dos SEM Modulares, da Oberheim, e os alemães Doepfer, Vermona e MFB disputam oscilador a oscilador o nosso cartão de crédito.
Claro que a pergunta que todos fazem é por que valeria a pena empregar algo entre 500 e 2 mil dólares num instrumento monofônico que não é um incontestável Mini Moog ou um vintage como o ARP 2600, Pro One ou até mesmo um Korg Prophecy? O que seria diferente nesse tipo de instrumento que um equipamento polifônico fabricado na atualidade não conseguiria fazer se acionado o seu modo monofônico, como todos têm? Resposta simples e ao mesmo tempo subjetiva, leitor: personalidade sonora!
O Dominon X, por exemplo, com três osciladores com variadas formas de onda em cada um deles, como o Mini Moog, cv inputs, como o ARP 2600, cinco tipos de filtros, como poucos apresentam, e memórias para os presets de quem precisa voltar com rapidez a sons de meses (ou horas) atrás não soa parecido com nada que eu tenha ouvido antes!
Talvez os sintetizadores sejam como vinhos: a partir de um certo patamar não existem os "melhores" ou "piores", e sim os que são adequados a cada tipo de cardápio musical.
As possibilidades de modulações e processamento sonoro nesse minúsculo instrumento alemão abrem novos mundos para quem quer mais de um sintetizador do que um preset chamado "lead synth1" ou "synth bass 22". Os sons são poderosos, 100% analógicos, com características próprias. Vale a pena uma estocada no YouTube para conferir algumas de suas possibilidades, como as que podem ser ouvidas em:
É flamenguista, músico, compositor, arranjador e produtor musical, além de ex-fumante.
Visite:www.myspace.com/fernandomoura.