Quando comecei no áudio, há mais de 20 anos, as coisas não eram assim tão diferentes dos 20 anos anteriores. Gravávamos em fita e finalizávamos para disco. Nessa época, éramos "obrigados" a entender, pelo menos, um pouco de eletrônica. Havia bias, flux, polaridade, azimute, capacitância, indução, resistência, impedância, alinhamento e diversos outros termos que sumiram com o advento e evolução do áudio digital.
Nessa mesma época, tive o privilégio de participar de uma palestra com Ken Pohlman. Ele dizia que os estúdios de grande porte estavam com os dias contados e que num futuro próximo os "discos" seriam gravados em um laptop. Na época, parecia papo de ficção científica. No entanto, foi exatamente o que aconteceu. Escrevo isso somente para explicar que a minha geração de profissionais e a nova se separam por um pequeno espaço de tempo e uma enorme diferença de realidade.
O áudio digital popularizou o processo de gravação, o que mudou totalmente a indústria da música, para o bem e para o mal. Nunca se produziu tanto e nunca tantas novas tendências e estilos surgiram tão rapidamente. E isso é ótimo! Por outro lado, a nova geração recebe décadas de técnicas empacotadas em presets de plug-ins e afins. Nada contra plug-ins e seus presets. Muito pelo contrário. Não tenho nenhum saudosismo tecnológico. Sou um completo entusiasta do áudio digital. No entanto, a falta do conhecimento sobre como essas técnicas e equipamentos surgiram e para que e como eram originalmente utilizados, resulta em uma limitada visão do processo como um todo.
Volta e meia me deparo com pessoas se referindo a algumas sonoridades como mistérios perdidos com o fim de alguns processos de gravação ou se referindo a esse ou àquele tipo de som como de tal e tal equipamento. Na verdade, sim, equipamentos têm características sonoras bem particulares, e, sim, algumas técnicas são restritas a esse ou àquele equipamento ou até mesmo a esse ou aquele estúdio. Mas, em 90% do tempo, o que se perdeu foi o conhecimento, a experiência. Elementos que, unidos, permitem juntar as técnicas e os equipamentos em um resultado desejado específico. Porque não adianta muita coisa saber que fulano faz isso ou aquilo se não se sabe exatamente aonde ele quer chegar com isso. Ou seja: técnica sem conhecimento não é o bastante, assim como abrir um plug-in e colocar um preset também não é.
Lá no início do pop rock - falo de Beatles, Rolling Stones, Led Zeppelin etc. -, homens como Bill Putnam e Les Paul eram levados a desenvolver equipamentos segundo as necessidades daquele momento. Então, quando artistas como John Bonham, baterista do Led Zeppelin, criavam um conceito sonoro para suas ideias, esses engenheiros "corriam atrás" de novas formas para tornar aquilo uma realidade. Novas curvas de respostas, amplificadores com maior headroom, acoplamentos melhorados, e assim por diante. Tudo era criado em paralelo com uma nova realidade artística. Assim como hoje.
A cada dia são inventados softwares incríveis, que fazem coisas ainda mais incríveis. Vejam o novo Melodyne, por exemplo. Afinar uma nota dentro de um acorde seria algo impensável há pouco tempo atrás. No entanto, aqui está.
SIMULAÇÃO X INTERAÇÃO
Outro dia estava conversando com um amigo sobre esse novo produto da Antares, o ATG-6, um hardware que se propõe a tornar obsoleto o afinador de guitarra. Além disso, ainda simula diversos tipos de guitarras e outras "cositas" mais. Nesse papo, eu dizia que esses simuladores, emuladores e afins, por melhores que sejam, nunca chegam perto de uma boa guitarra, ligada a um bom amplificador, tocada por um bom guitarrista, captada por um bom microfone e um bom pré, por um bom engenheiro, porque é justamente esta cadeia inteira que essa tecnologia tenta reproduzir.
E foi aí que me bateu a impressão que tenho ao ouvir um simulador/emulador desses: sinto que estou ouvindo uma coisa só. É aquele som e pronto, quando "da forma analógica" você ouve a soma de diversos componentes e de suas interações. A mesma cadeia de equipamento pode produzir resultados muito diferentes apenas com uma pequena alteração em um dos seus componentes. Basta dizer que dois guitarristas não tiram o mesmo som de guitarra. Eu não estou falando sobre mais agudo ou grave, mais distorcido ou mais limpo. Me refiro a uma percepção da cadeia como um todo.
É como pintar. Há o amarelo e o azul. Você pode comprar uma tinta verde, mas nunca conseguirá uma tinta verde que seja exatamente igual à combinação que o pintor fez na hora, na frente da tela. Me refiro a esse controle, a essa versatilidade. É essa dose de caos, de aleatoriedade, de variações nas nuances, que dão vida à coisa. Conhecer como essas interações funcionam é o que fez artistas como Jimi Hendrix estabelecerem padrões que nossos atuais plug-ins tentam copiar.
Venho percebendo que os novos profissionais que ingressam no mercado não têm a menor ideia de como as coisas chegaram onde estão. Muitos são até muito eficientes, inventivos e capacitados dentro da tecnologia atual, mas, ainda assim, se pegam incapacitados diante de imprevistos e problemas facilmente solucionáveis quando se possui um mínimo de conhecimento teórico.
Quantos não sabem sequer o porquê de o Pro Tools possuir determinado layout? Por que MIDI tem 16 canais (muitos nem sabem o que é MIDI, na realidade)? Qual é realmente a função das relações entre resolução e sample rate? Hoje, todo mundo pega um Pro Tools LE e acha que é somente plugar um microfone onde está escrito "mic in" e apertar "maçã + space" que já está gravando música. Ninguém mais se preocupa com nível, com impedância, nem com resolução. "Pluga aí e aperta que já sai um som." E o pior é que sai. A maioria não sabe porque e como sai, e nem quer saber. Só sabe que sai, mas cheio de limitações e "distorções" que acabam virando parte dessa nova linguagem "muderna".
Isso é normal e sempre foi assim. Os limites são os grandes incentivos para o desenvolvimento e descobrimento de uma nova técnica e/ou estilo. No entanto, não se pode ignorar todas as técnicas que demoraram décadas para serem desenvolvidas. Pelo menos, não gratuitamente. Quantas vezes eu peguei sessões de Pro Tools em que havia um L1 (limiter) em quase todos os canais. Sai som, é alto e tal, mas e se perguntam como é que se tirava aquele som de bateria do Bonham - alto, pesado, com muito ambiente, mas sem distorções e com detalhes e uma dinâmica inacreditável?
CONCEITOS E IDEIAS
Não faz muito tempo que li um artigo sobre uma tentativa de se recriar aquele som com o próprio filho do Bonham tocando bateria. Chegaram perto, mas não chegaram lá. Porque, principalmente, faltou o Bonham. Não só o baterista, mas o cara com o conceito claramente estabelecido dentro da sua cabeça.
E como é que se fazia aquele som da bateria do Phil Collins? Não era um preset gate em um reverb no estúdio. Aquilo foi um gate dinâmico num microfone ambiente, trigado pelas peças da bateria. Imaginem o trabalho, as tentativas até chegar ao que hoje é mais um preset em quase todos os reverbs que existem.
O conhecimento serve não apenas para tirar 100% do que um equipamento pode produzir, mas para que seja possível improvisar 10% a mais
Como é que surgiram essas ideias? A resposta para essa pergunta é: conhecimento de toda a cadeia sonora. O conhecimento serve não apenas para tirar 100% do que um equipamento pode produzir, mas para que seja possível improvisar 10% a mais. Esses 110% é que diferenciam o comum do genial. Se vocês forem ver, os expoentes do áudio atual estudam e se aprofundam nas técnicas que originaram o que se faz hoje. O cara pode fazer o som mais estranho do mundo, mas no conjunto a coisa funciona perfeitamente. Basta ouvir os CDs do Nine Inch Nails ou dos Raconteurs. Essas músicas não soam esquisitas quando tocadas no meio de outras. Soam "grandes", completas, com textura e equilíbrio.
O QUE É "SER MODERNO"?
Não adianta você comprar dez guitarras top se você vai espetar as dez em um emulador de amplificador, pois você nunca vai entender a interação dos componentes que esse emulador tenta substituir. Mas, por outro lado, se você conhece essa interação, se você já microfonou um amp ou coisa parecida, esses emuladores passam a ser uma ferramenta muito mais interessante e você pode até tirar 110% dela.
Ser moderno não é fazer tudo distorcido e ignorar elementos básicos, como afinação, andamento, tonalidade. Ser moderno é ter domínio de tudo isso para poder saber até onde se quer chegar e ter noção das consequências dessas decisões. Ser moderno é desafiar os conceitos estabelecidos, mas como se pode desafiar algo que não conhecemos?
A impressão que me dá é que o novo áudio está passando pela adolescência: questiona tudo, não se importa com o que já foi feito, sabe tudo e desconsidera consequências. Por outro lado, artistas e profissionais do áudio já estabelecidos, na ânsia de permanecerem "atuais", podem acabar embarcando nessa onda, abrindo mão de preceitos que ajudaram a definir a qualidade dos seus trabalhos anteriores. Eu, sinceramente, não entendo por que um item tem que invalidar outro. Uma coisa é estilo, outra é qualidade.
"O novo áudio está passando pela adolescência: questiona tudo e não se importa com o que já foi feito"
Hoje, cada vez mais, me pego pesquisando os clássicos. Faço isso no intuito de não me deixar cair na tentação das soluções "empacotadas". Graças a isso, venho descobrindo novas formas de fazer as mesmas coisas. Tenho gostado muito de tentar repetir algumas técnicas clássicas dentro do ambiente digital. As possibilidades são infinitas e pra lá de gratificantes. Parallel Comp., M/S, Feedback Proc., Positive/Negative EQ. Está tudo ali. Lindas ferramentas pra usarmos em hardware ou em sofware.
Ignorar o passado não é rebeldia nem modernismo, mas, sim, um desperdício de conhecimento estabelecido a duras penas.
Walter Costa é produtor e técnico de gravação e mixagem. Entre os prêmios que recebeu ao longo de sua carreira está o Grammy Latino 2010 pelo álbum Banda Dois, de Gilberto Gil, vencedor na categoria Melhor Disco de Música Popular Brasileira.