Lugar da Verdade
De boy a presidente...
passando por todas as áreas da empresa
Apesar de ser das trajetórias mais completas e ricas, infelizmente essa não é uma história comum no nosso país. Poucos boys deixam de ser boys. Poucos gerentes viram diretores, e poucos presidentes vieram de uma posição menos nobre. Mas este é o único jeito de se conhecer uma empresa realmente.
Aos 34 anos, dos quais 24 foram de envolvimento absoluto com música e áudio, posso dizer que mesmo não trabalhando em uma empresa onde tenho um cargo assalariado, cuido da minha vida e de minha carreira como uma (empresa) e já passei por incontáveis setores dela. Recebo inúmeros e-mails de leitores perguntando dicas de como começar, onde estudar, o que ler e onde trabalhar, para enfim "se tornar um engenheiro de som". Aproveito a última página desse mês, pra falar sobre as "diversas áreas da empresa" e o que cada uma delas pode te ensinar.
Ser músico. Essa é uma dúvida comum. É preciso ser músico para se tornar um bom engenheiro de som? Bem, talvez não seja necessário ser um instrumentista. Mas músico, sim. Você não precisa dominar um instrumento, mas precisa saber fazer música. Sendo músico e ao menos arranhando um instrumento, você vai aprender a falar de música, de notas, de tempo, de timbres. Vai aprender os sons dos instrumentos e vai ter noção de arranjo. Vai saber falar sobre música com músicos e vai ser respeitado por ser um músico, não apenas um apertador de botões.
Equipe de som. Muitos começaram assim. Inclusive eu. É a maneira de tocar na noite pra quem não é violonista e cantor! E o jeito mais rápido de criar um gostinho inicial para viver do áudio. Tendo uma mini-empresa de som para micro-eventos ou festinhas, você aprenderá muita coisa, como gerir seu próprio negócio, noções básicas de PA, alinhamento, timbre, cobertura. Aprenderá a cuidar do equipamento, fazer cabos, soldas e pequenas instalações. No lado musical, aprenderá que as gravações soam bem diferentes. Que cada CD tem uma masterização totalmente distinta. Perceberá quais músicas funcionam com o público. E que, para cada evento, você terá um tipo, tamanho e quantidade de equipamento adequado.
Assistente de estúdio. Outra boa etapa da empresa... porém, está se tornando uma área mais rara, com a diminuição dos estúdios de grande porte. Sendo assistente, você aprende o que há de mais importante em produção de discos: as etapas. O que se tem pra fazer, e como se faz. Praticamente qualquer bom engenheiro de som já foi um bom assistente. Você vai aprender a usar o equipamento e, acima de tudo, aprender a ouvir. Vai se acostumar com altos padrões de sonoridades e todo o ambiente da produção fonográfica, aos poucos, se tornará seu habitat natural.
Engenheiro de gravação. A área comum de quem deixa de ser assistente. Gravando, você vai aprender muito sobre microfonação e acústica. Aquilo que você aprendeu tendo bandinhas, vai usar muito nas suas gravações. Tendo sido ou sendo músico, saberá lidar com as formas das músicas, verso, refrão, etc... Sua noção de arranjo te ajudará na escolha dos microfones para gravar cada parte de um disco. Vai começar a ensaiar várias mixagens e vai perceber que elas não soam como os discos que você gosta de ouvir. E depois vai ver que, principalmente nos dias de hoje, uma mixagem não masterizada não vai soar terminada. E então vai também começar a engatinhar nessa área.
Mixagem. Quando você finalmente se tornar um mixer, vai aprender que, antes disso, você na verdade, não sabia gravar! E com certeza vai se tornar um engenheiro mais completo. Quando for gravar novamente, o fará muito melhor, enfim entendendo o que faziam com todo aquele áudio que você gravava e alguém mixava. Aquele conhecimento de arranjo que aprendeu, não só estudando música mas também ouvindo muita música na sua equipe de som, vai agora te servir pra mixar um disco. O que na verdade é mixar ? A melhor definição a que eu cheguei é reger música gravada. É como se você fosse o maestro, mas os músicos não estão lá, então através dos faders, compressores, pans, reverbs, você aumenta ou diminui, chega pra perto ou pra longe, pra um lado ou outro, cada sessão da sua orquestra.
Mixagem de PA. Durante anos me neguei a mixar shows. Tinha um medo enorme de me acostumar com uma sonoridade menos pura do que a do estúdio. Porém posso dizer que mixar turnês foi o que me ensinou a mixar discos. De cara, ao vivo você aprende a mixar mesmo. Não a esculpir, editar, retalhar uma música. Você mixa. Aprende o que funciona para o público. O que emociona. E tem um resultado imediato, ao contrário de uma gravação de disco, que você trabalha sozinho, sem saber o que o ouvinte acha do que você tá fazendo. O PA te ensina a lidar com frequências como nada mais o faz. Você realmente aprende a usar o equalizador. Aprende a ouvir e identificar cada frequência. Além de aprender a mixar, aprende com o show a masterizar. Alinhar um PA é uma aula de masterização e timbragem de um programa. Aprende que o som do equipamento, da acústica e dos seus ouvidos, mudam demais com volumes diferentes. Tudo isso você vai definitivamente usar quando voltar pra o estúdio.
Masterização. Sou feliz de ter tido o hábito de acompanhar quase todas as sessões de master das mixagens que fiz na vida. Como eu aprendi! Não necessariamente a masterizar. Mas aprendi a ouvir as minhas mixes. Aprendi como elas soavam. E o que outros ouvidos treinados faziam com ela. Quando finalmente me senti pronto pra ingressar em masterização, então aprendi que havia muito o que não sabia sobre mixar! Finalmente entendi na prática a correlação de VU para peak. Masterizando você realmente aprende o que é compressão. As diversas variações desse processamento de sinal. As reais diferenças entre comprimir e limitar. E finalmente vai perceber por que suas mixes não soavam como os discos que você tanto gostava de ouvir. Vai ver que muita coisa melhora na master, e também vai ver que nada é solucionado totalmente nela. Definitivamente, a master vai te tornar um melhor mixador.
Após ter tido a feliz oportunidade de passar por várias áreas da empresa na minha vida, me tornei melhor em todas elas. Sei como é feito cada processo, e por que um pode tanto ajudar ou atrapalhar outro no decorrer da produção. No Brasil, não é comum uma empresa real te dar a oportunidade de conhecer todos seus setores. Mas quem é feliz por ter escolhido gostar de música e áudio pode subir na empresa por conta própria. E vai ter a alegria imensurável de chegar à presidência, sem precisar ser filho do dono!
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Enrico De Paoli é engenheiro de gravação, mixagem e masterização e dono do estúdio Incrível Mundo. Projetos recentes incluem Glaucia Nasser, Titi Walter, Geroge Durand, Cheryl Engelhardt e Djavan. cartas@enricodepaoli.com