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Revista Luz & Cena
Entrevista
Moacir Santos
Alegria de chorar e ter a música na alma
Felipe Galvão e João Pequeno
Publicado em 09/01/2006 - 00h00


Aos 79 anos, Moacir Santos caçou na memória choros compostos na década de 40 que nunca haviam sido gravados para o novo CD sobre sua obra, produzido pela dupla Mário Adnet e Zé Nogueira e lançado pela gravadora Biscoito Fino neste ano.

Os movimentos para tocar o sax que o consagraram se foram com um AVC (acidente vascular cerebral) sofrido há 10 anos, mas a musicalidade não morre nunca, como prova a memória de Moacir Santos. No último ano, o maestro lembrou de uma série de choros que compôs na década de 40 e que jamais haviam sido gravados e os transcreveu em partituras para que fossem finalmente registrados em disco. Lançado pela carioca Biscoito Fino, o CD Choros & Alegria é o segundo que o violonista Mário Adnet e o saxofonista Zé Nogueira produzem com composições de Moacir - o primeiro, Ouro negro, saiu em 2001, pelo selo paulista MPB.

Morando em Los Angeles (EUA) desde 1965 com a mulher Cleonice, Moacir Santos passou uma temporada na casa de Adnet, no Rio, enquanto ia se lembrando dos velhos choros. À medida que lembrava, o violonista e produtor passava as partituras para o computador, em seguida repassando-as aos músicos que participaram das gravações, um time de craques que incluiu o pianista Marcos Nimrichter, o guitarrista Ricardo Silveira e até o trompetista norte-americano Wynton Marsalis, além dos próprios produtores (Zé Nogueira em quase todas as faixas, Mário Adnet em algumas).

Além dos choros, o disco incluiu uma série de temas mais jazzísticos - algumas sobras de Ouro negro -, além de sambas e canções infantis ou inspiradas em músicas circenses. Independentemente das diferenças de estilo, todas elas foram apelidadas pelo maestro de alegrias, daí o nome do CD. Ele até canta em algumas, para as quais escreveu letras curtas.
Assim como em Ouro negro, a intenção dos produtores foi manter a instrumentação baseada no LP de estréia solo de Moacir, Coisas, de 1965.

Ao invés de big bands, entram em cena bandas de câmara, mais ligadas à execução jazzística dos temas - vide os músicos escolhidos. Mesmo os choros - por mais que alguns fraseados lembrem o estilo imortalizado por Pixinguinha - foram gravados nesse espírito, com guitarra elétrica, trios de violões, até um acordeão (não por acaso em Saudades de Jaques, dedicada a Jackson do Pandeiro). "Nossa intenção jamais seria a de fazer gravações de choro tradicional. Primeiro porque muitos já fizeram isso e muito bem. Segundo, mas principalmente, porque o espírito do Moacir sempre foi renovador e continua sendo", diz Mário Adnet.

Gravação dispensou compressão nos metais

A gravação e mixagem, feitas pelo engenheiro Duda Mello no estúdio AR, no Rio, seguem a linha jazzística, motivo pelo qual os metais não receberam compressão. "Procurei trabalhar sempre buscando deixar bem clara a dinâmica dos metais solando", conta Duda, que já havia trabalhando em Ouro Negro.

Formado pelo Institute of Audio Research, em Nova York (EUA), o engenheiro sente que teve "mais controle" no trabalho de Choros & Alegria. O produtor Mário Adnet conta que se inspirou nos arranjos "de câmara" de Coisas. "Nos choros, por exemplo, não usamos regionais com formação idêntica às dos conjuntos dos anos 30 e 40. Mudamos a escolha de instrumentos em cada um deles", explica. Ainda assim, parte do CD foi gravada com os músicos tocando junto. "Como muitos deles participaram de Ouro negro, ficou bem mais fácil", conta Adnet.

A bateria, a cargo de Jurim Moreira, o baixo acústico de Jorge Helder, os pianos acústico (3/4 de cauda Yamaha) e Fender Rhodes de Marcos Nimrichter e a guitarra de Ricardo Silveira foram gravados juntos. Com a guitarra e o Fender Rhodes registrados em linha, Duda Mello gravou o baixo acústico com três microfones, sendo um AKG C12 na saída de som, um Neumann KM100 no meio do cavalete, preso com um elástico e outro em cima, de frente, apontando para o braço do instrumento.

Na bateria, o engenheiro utilizou microfones diferentes, como no bumbo, que captou com um AKG D112 do lado de dentro e um Neumann U47 de fora. Já os overheads foram gravados com um par de Neumann KM 184, passando por um pré Studer, "de uma mesa antiga que o AR comprou, tirou os módulos e fez caixinhas de pré", conta. A sala foi registrada com um par de Earthworks TC40, em ambiente; o hi-hat, com um Schoeps, os tons, com três Sennheiser MD421 e as caixas, com um Shure SM57 em cima e outro embaixo.

O piano foi registrado com um par de Neumann M249, um totalmente aberto para captar especialmente as freqüências graves e outro logo acima da cauda, para graves e médios.

Após essa banda básica, foi gravada a percussão de Marçalzinho, com "tantas microfonações que eu jamais me lembraria de todas", admite Duda Mello, que também trabalhou nos discos mais recentes de Ed Motta, Aystelum, e Marcos Valle, Jet samba. Ele lembra, entretanto, que usou um AKG C414 em cada uma das três congas, "para conseguir um som bem próximo", um Neumann U87 no surdo, "para um grave forte" e outro KM100 no bongô.

A terceira base foi o violão de Adnet, que tocou em poucas faixas, entre elas Cleonix, um choro de 1947 que Moacir Santos compôs em homenagem à mulher. "Esse foi o mais simples, apenas um Neumann M249, entre o braço e o corpo, para não ter excesso de grave, já que havia muitos instrumentos", disse o engenheiro.

A parte mais desafiadora foi a dos metais, cuja formação se revezava entre cada faixa, até pela ausência de compressão, a exemplo de Aystelum. "Quis seguir, como no disco do Ed, uma orientação mais próxima do jazz, em que a dinâmica dos metais é muito importante", afirmou Duda Mello. Os trompetes, entre os quais o da jazzística Rota 8, solado por ninguém menos que Wynton Marsalis, foram captados com Neumann U87, assim como o sax alto, de Nailor Proveta. Já o sax soprano, do também produtor Zé Nogueira, foi gravado com um AKG Solid Tube, e o tenor, com um C12. O sax barítono, de Teco Cardoso, e os dois trombones, de Vittor Santos e Antoni Henrique Bocão, com Neumann M249. As flautas, de Andréa Ernst Dias, também foram captadas com AKG Solid Tube.

O choro Ricaom (Moacir ao contrário, de 1948) teve a participação do Trio Madeira Brasil (Zé Paulo Becker, violão; Marcello Gonçalves, violão de sete; e Ronaldo do Bandolim, no bandolim)

Duda Mello trabalhou com uma mesa Neve V3 e gravou todo o CD em um Pro Tools Mix Plus, com interfaces 888 e 32 saídas/mesa. Mas ao invés de retornar o som da mesa diretamente ao Pro Tools, ele usou a técnica antiga "e ótima" de mixar o áudio para uma fita de meia polegada, a Quantagy 499, rodando em uma máquina Studer 807. "É uma forma antiga de tratar o som, mas que gosto bastante de usar. Acho que o registro fica mais quente dessa forma. É uma plataforma física excelente", assinala o engenheiro, sempre ressaltando também a importância de deixar os metais soltos, sem compressão.

Nos demais instrumentos ele conta que ainda usou alguns efeitos de compressão e equalização, sempre com equipamentos antigos, como UREI 1176 e Pultec, "que mantém sons gordos, grandes", mas nenhum plug-in. A masterização foi feita por Carlinhos Freitas, no Classic Master, em São Paulo.


Legenda: Zé Nogueira, Mário Adnet e Wynton Marsalis, durante a gravação de Choros & Alegria
Foto Divulgação

Chorinhos não-ortodoxos e jazz latu sensu

Entre o estilo jazzístico, ressaltado pelo engenheiro, destacam-se a já citada Rota 8 e a radical - e inspirada - Lemurianos, composta em 1980, em um estilo que namora nuances arabescas e indianas, além de trazer solos excelentes, principalmente na guitarra de Silveira e no piano - nesta música, não com Nimrichter, mas com o consagrado Cristóvão Bastos.

Nos seis choros, apesar da instrumentação diferente da tradição dos regionais do estilo original, é impossível não notar semelhanças com os fraseados e contrapontos de Pixinguinha (que, assim como Moacir, era clarinetista e saxofonista), especialmente em Vaidoso - até pelo nome.

Nascido em Flores, no agreste pernambucano, Moacir Santos lembra de detalhes complexos de sua vida desde que saiu da cidade natal, passando por várias localidades de Pernambuco e Paraíba até chegar a João Pessoa e, de lá, ao Rio de Janeiro, para a Rádio Nacional, onde se firmou como maestro nos anos 40.

O músico não se lembra exatamente de quando começou a tocar, mas sim de que estava tocando, batendo lata, no dia em que sua mãe morreu, quando tinha apenas três anos. "Eu sabia de alguma forma que estava me separando dela, mas ainda não tinha noção do que era a morte", conta.

Moacir e os quatro irmãos foram criados, cada um, por uma família diferente de Flores. Sua maior diversão na infância - "uns 10, 11 anos" - era pegar emprestados instrumentos da banda de música da cidade. De tanto insistir, acabou virando o guardião (sim, àquela idade, na época não havia o Estatuto da Criança e do Adolescente) dos instrumentos, "e aprendendo todos". Até que um dia, o diretor da banda precisou de músicos substitutos e ele acabou sendo admitido na clarineta. "Já sabia tocar sax, mas ele disse que o sax era dele e não me deixou tocar por isso", diverte-se.

Fugindo de casa, na caçamba de um caminhão Moacir Santos percorreu diversas cidades do interior de Pernambuco até reencontrar o diretor da banda de Flores, que o levou para João Pessoa. Lá, ele tocou na banda da Polícia Militar, em 1945, e, em seguida, passou a integrar a banda da rádio Tabajara. Foi da mesma rádio que saiu a lendária Orquestra Tabajara, do maestro Severino Araújo. Moacir desceu ao Rio três anos mais tarde, em 1948, após uma complicação política em que ele e outros músicos pegaram instrumentos da rádio emprestados da rádio para tocar em um evento de adversários políticos do então governador da Paraíba, Oswaldo Trigueiro, e ganhou uma carta de recomendação para a rádio Nacional, no Rio de Janeiro.


Legenda: Adnet, Zé Nogueira e Moacir, no estúdio da gravadora Biscoito Fino
Foto Divulgação

Em seu primeiro teste na Nacional, Moacir, com seu sax tenor, tirou logo de cara uma música que os outros músicos da big band da rádio lhe apresentaram. Mas quando ele sacou uma música própria, ninguém conseguiu acompanha-lo de primeira. Após atuar como músico, foi convencido pelo diretor artístico, Paulo Tapajós, a apresentar uma música no programa Quando os maestros se encontram, em que a banda da rádio tocava composições inéditas.

Moacir relutou porque os estudos de música lhe tomavam muito tempo. Ele estudava com cinco professores ao mesmo tempo, todos renomados como Guerra-Peixe e o alemão Hans Joachim Koellreuter, para depois ensinar música a alguns dos principais nomes da bossa nova, como Roberto Menescal e Nara Leão, além do boêmio Nelson Gonçalves. "Gostava de ouvir opiniões diferentes, a visão de um professor era pouco para mim", afirma Moacir, que também compôs trilhas para filmes como Ganga Zumba, de Cacá Diegues, e Os Fuzis, de Ruy Guerra.

Depois de passar a maestro da rádio Nacional e tocar em discos seminais da bossa nova, Moacir Santos gravou, em 1965, seu primeiro disco solo, Coisas, em que as músicas todas se chamavam Coisa, mais um número - no caso, de 1 a 10, pois eram dez músicas -, de acordo com a tradição dos opus da música clássica.

O disco lhe valeu reconhecimento internacional e o fez trocar o Brasil pelos Estados Unidos, onde foi homenageado pela prefeitura de Los Angeles neste ano. E onde, afirma, "há músicos maravilhosos, bons, médios e ruins, como no Brasil. Mas todos trabalham, todos tocam. Aqui, a maioria em qualquer patamar dificilmente arruma trabalho", lamenta.  
 
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