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Revista Luz & Cena
Gravação
Noite escura e pesada
Lobão não economiza nas guitarras em novo disco, produzido por ele, Carlos trilha e Fernando Morello no estúdio Órbita
João Pequeno
Publicado em 01/08/2005 - 00h00
Divulgação
 (Divulgação)
Ao produzir o disco Canções dentro da noite escura, Lobão, Carlos Trilha e Fernando Morello guiaram-se pelo princípio de não pegar leve na altura e nas camadas de instrumentos, principalmente guitarras, que se multiplicam nas onze músicas do disco, chegando a dez canais diferentes em uma música. Para Trilha, a padronização da produção musical brasileira por um som leve sempre prejudicou as gravações de discos de rock e afins. "A ordem da indústria fonográfica sempre foi de abaixar as guitarras, tirar a pressão da bateria e pôr a voz lá em cima. É claro que isto gerava uma padronização enorme, da qual fizemos questão de nos colocar à parte", afirma o produtor e músico, que conheceu Lobão em 2001, através do baterista  Alex Fonseca, da banda Infierno, que ele também havia produzido em seu estúdio, o Órbita, no Jardim Botânico (zona sul do Rio).
"Logo que conheci o Trilha, fiquei muito amigo dele, tivemos uma ótima sintonia. Isto foi fundamental para a gravação do disco, porque se trabalha muito melhor desta maneira, se você pensar que as sessões geralmente começavam por volta das oito da noite e iam até umas quatro horas da manhã. Tem que haver uma boa sintonia", avalia Lobão, que tocou todas as guitarras de Canções..., além de ter voltado a gravar bateria, seu instrumento original. Eles trabalharam juntos no CD ao vivo Lobão 2001, uma odisséia no universo paralelo. "Trilha fez milagre naquele disco, acelerando os instrumentos e desacelerando os samplers que usamos ao vivo, e acabamos, em alguns momentos, perdendo a sincronia durante o show", lembra.
O novo disco, lançado na décima edição da revista Outracoisa, que o próprio Lobão edita, começou a ser gravado há dois anos na casa dele. "Lobão já estava meio saturado, então às vezes já não fazia tanta idéia se aquela música era boa, se não era...Eu ouvi algumas faixas e achei excelente, e o aticei para gravar logo, pois valia a pena", lembra Carlos Trilha.

Todos os três bateristas do disco começaram cedo no instrumento
Embora gravado no estúdio Órbita, Canções... teve alguns instrumentos aproveitados da casa de Lobão e do estúdio BoomBox, do baterista Pedro Garcia (Planet Hemp), em Santa Teresa. Pedro, que começou a tocar com apenas 12 anos, em 1994, na banda de hardcore Cabeça, gravou as baterias de O homem bomba (Basta! É o caralho) e Não quero seu perdão. "Além de bom músico, tem ótimas idéias e tudo para vir a ser um produtor de primeira", elogia Lobão, que se divertiu até com alguns percalços da gravação. "A gente às vezes precisava parar quando o bonde passava pelos trilhos, em Santa Teresa", lembra.
Outros dois bateristas que começaram cedo foram o próprio Lobão e Marcelo Costa, que tocou em Seda (com letra inédita de Cazuza) e em Vamos para o espaço!. Na década de 70, eram considerados rivais, pois, adolescentes, tocavam em bandas de rock progressivo repletas de músicos virtuosos, Lobão no Vímana, e Marcelo na Barca do Sol. "Chegou a sair matéria em jornal conosco, como os enfants terribles da bateria", lembra Lobão, acrescentando que, antes mesmo disto, já havia sido chamado para tocar com os Secos & Molhados. "Não tinha nem 15 anos, minha mãe não deixou", conta.
A bateria ganhou um aspecto especial graças ao formato em L da sala do Órbita, além da parede de pedra e tijolos. "Muita gente acha que temos uma sala enorme, mas o fato é que esse corredor dá esta impressão, já que colocamos os microfones sensíveis ao fundo e a bateria numa curva, do outro lado".


Carlos Trilha: ele assina a produção do novo disco de Lobão ao lado do artista e de Fernando Morello

Para cada música gravada, foi montado um set-up diferente de bateria, conta Trilha. Diversas peças de Tama e Pearl foram utilizadas, além de pratos Sabian e Zildjian, entre outros. Para os tambores foram utilizados microfones dinâmicos, como AKG D112, RE20, ND36 e RE35. Para ambiente, sensíveis, como RE 2000, Oktava e Neumann U87. Para os pratos, AKG Tube C12 e AKG C414.

Nove faixas diferentes de guitarra na mesma música
Da casa de Lobão, várias faixas de guitarras foram aproveitadas, "em média uma por música", lembra Morello, acrescentando que na instrumental E aí, galera maluca?,o músico chegou a gravar nove pistas do instrumento. O grande número de guitarras incluiu modelos clássicos como as Gibson Les Paul e SG; Fender Strato e Telecaster; Rickenbaker de 12 cordas e outras mais alternativas, como a Schecter.
"Saí gravando em casa várias guitarras e quando levei o material para o estúdio, Fernando [Morello]  e Trilha disseram para que deixasse como estava, porque E aí, galera maluca? merecia ser registrada daquela forma. Só o baixo e a bateria é que foram feitos no Órbita", conta Lobão, que preferiu gravar as guitarras com distorção dos amplificadores, entre os quais Marshall JCM800 e JCM Slash. Ele também usou um Vox AC30 e um Meteoro Cristalino para as guitarras limpas.
Além dos amps, boa parte dos efeitos foi moldada por pedais Big Muff e por uma pedaleira Vox, com opções como phaser, flanger, ring modulator, filtros e wah-wah. "Uma das principais características do disco - diz Trilha - foi a liberdade para experimentar. A cada música, Lobão testava oito, nove sonoridades diferentes de guitarra em uma única sessão", conta. Dentre o material experimentado estiveram o amp Marshall JCM e a guitarra Gibson SG, de 68, ambos do guitarrista da banda de glam rock Cabaret Pedro Carrilho, que também estava gravando no Órbita.
Além de guitarras, da casa de Lobão foram aproveitadas algumas gravações de teclados, instrumento em que ele ainda engatinha, enquanto afirma que finalmente passou a se considerar um guitarrista -  apesar de já tocar as seis cordas desde seu primeiro disco, Cena de cinema, de 1983, mas somente em A vida é doce (99) ele assumiu sozinho as guitarras. Mesmo assim, não se sentia no domínio total do instrumento. "Só agora eu sinto esse domínio, de conhecer bem as sonoridades, os timbres e conseguir tirar aquele som que eu pensei para aquele riff, aquele solo, para três bases diferentes. Antes, eu ainda não tinha a certeza de que ia sair como eu queria", conta o músico, que gravou os instrumentos em casa em um Pro Tools Digi 001, através de uma mesa Mackie 1604.

Órgãos e sintetizadores vintage: tons ora soturnos, ora psicodélicos
Lobão gravou um órgão em Seda, e um sintetizador Nord Lead em Quente, mas a maioria dos teclados ficou mesmo por conta de Carlos Trilha, especialista no assunto, já tendo acompanhado Legião Urbana, Marisa Monte e Ana Carolina. Além de também usar o Nord Lead, em músicas como Depois das duas, Trilha pontuou a viajante Vamos para o espaço com um Korg Poly Six, primeiro sintetizador polifônico da Korg, da virada das décadas de 70 e 80, enquanto que o rock Você e a noite escura, Boa noite, Cinderela, e Balada para o inimigo, por suas características, pediram sons de órgão mais soprados, feitos em um Roland VK-7, com caixa Leslie própria de madeira, e uma sonoridade que remete ao clássico Hammond B3. Trilha ainda gravou um piano acústico Bosendorfer em Vamos... que contrasta propositalmente com a atmosfera eletrônica da canção.
O baixista em todo o álbum foi Daniel Martins, que gravou com dois modelos clássicos da Fender, o Precision e o Jazz Bass, microfonados em duas configurações diferentes. Uma em amplificadores Marshall e Fender Bassman e outra, em linha, diretamente  no pré-amp Avalon 737.

Músicos e produtores experimentaram com instrumentos, processadores e pré-amps de características variadas
Quente, aliás, teve uma instrumentação mais puxada para os instrumentos acústicos, que também incluíram um cello de Fernando Morello e um violão de 12 cordas de aço que Lobão tocou apenas com as cordas mais finas de cada dupla afinadas à maneira celta (D-A-D-G-A-D, da mais grave para a mais aguda).
Outra experimentação acústica, mais radical, foi o uso do tamboura, um instrumento indiano de cordas levado pelo técnico de gravação Fernando Monteiro, "um experimentador de instrumentos desconhecidos", segundo Trilha. Lobão, que nunca havia tocado o tamboura, o afinou em Si nas quatro cordas mais graves, especialmente para uma parte de Não quero o seu perdão.
As vozes foram gravadas com microfones Electro-Voice RE 20, dinâmico e direcional, e RE 2000, com diafragma sensível, "que lembra o Neumann U-87", diz Morello.
Diversos outros efeitos foram feitos em processadores externos, como Lexicon MPX-G2, MPX1, LXP-15, Ensoniq DP4, Manley Vox Box (pré-amp valvulado), Avalon, sampler Roland S760.
Os produtores ainda utilizaram o jurássico processador de delay de fita Echoplex, com caixa de madeira, muito utilizado na virada das décadas de 60 para 70 por bandas de sonoridades tão diversas como os Mutantes e os alemães do Kraftwerk.
Outro recurso eletrônico vintage aproveitado foi a bateria eletrônica Rhythm Ace, da década de 60. "Não é nem programável, só se define a velocidade", conta Trilha, que ajustou o andamento do aparato para uma batida de bossa em Para sempre essa noite, que abre o disco intercalando a levada de bossa eletrônica com guitarras pesadas em determinados momentos. Além da Rhythm Ace, a canção também teve uma bateria acústica gravada por Lobão em ritmo de drum and bass. "A intenção era fazer com bateria tocada e não programada para que não ficasse como as dezenas de db's/bossa/lounge para exportação que aparecem por todo lado agora", analisa o músico.

Canções sobre a noite escura  foi baseado em uma noite imaginária no baixo Leblon
Apesar desta programação, a atmosfera do disco passa longe dos dias de luz e festas de sol. A idéia foi de elaborá-lo como uma trilha sonora para uma noite passada no baixo Leblon, "mas em um Leblon soturno, frio, de inverno, e também um tanto psicodélico, em que vou andando e encontrando pessoas como Cássia [Eller, a quem dedica o blues Boa noite, Cinderela, composto no dia de sua morte], Cazuza [de quem recebeu a letra de Seda da mãe, Lucinha Araújo] e Júlio Barroso [de quem aproveitou duas letras inéditas, de Quente e Não quero mais o seu perdão, esta em parceria com a ex-mulher dele, Taciana Barros]".
Por conta desta idéia de abrigar uma história no disco, suas faixas são todas interligadas. "Sempre mantemos alguns elementos de alguma faixa, geralmente já baixos - como em trilhas de filmes ou de peças, quando se troca de cena -, enquanto a música seguinte começa", resume Trilha.
O cantor, compositor e multiinstrumentista garante que não se trata de um saudosismo oitentista [que seria à exceção de Cássia, do início dos 90] . "Eu quis voltar a compor com estes parceiros, que ainda sinto muito vivos", afirma Lobão, rechaçando a febre revival de festas como Ploc 80's, Caia nos oitenta e afins, "uma nostalgia mórbida de gente que não viveu essa época ou, se viveu, hoje pensa que a melhor época da sua vida passou, e ninguém vai para frente assim", analisa.
A violência urbana que enche de grades os prédios do Leblon, bairro onde Lobão cresceu e mora, também serviu de inspiração para a estética escura do disco, com guitarras pesadas e sintetizadores soturnos, além da temática de letras como a de Homem bomba, que ele define como "os últimos três minutos de um traficante de 12 anos - ou até menos, como um que matou, aos seis anos de idade, o meu amigo Alcir Explosão na Mangueira numa espécie de rito de iniciação [em 1998]. Nem sei se ainda está vivo, porque esses não têm a menor perspectiva de viver sequer até os 20 anos. Não têm nada a perder e querem mais é tirar onda com fuzil, comer menininha e matar enquanto não chega a hora de morrer. É a mesma lógica dos homens-bomba fanáticos do Oriente Médio: o cara vai morrer, mas vai levar um bando junto. E aí, quando essa violência chega à zona sul, a classe média alta acha que vai combater a violência com movimento Basta!? É quase como um 'saia do meu jardim e não venha sujá-lo'. Isso é ridículo", dispara Lobão, embora Homem bomba não chegue a assustar em tempos de raps proibidos celebrando bandidos, líderes e soldados de facções criminosas.
O disco decola em Você e a noite escura, bom rock que abre sobre um riff agudo e tem letra afiada citando fantasmas e ondas noturnas na praia do Leblon, além de um belíssimo solo de guitarra.
Seda casa bem os arranjos de balada pontuada por ecos de órgão e guitarra em delay com a letra desencantada de um Cazuza pouco antes de sua morte. Tanto a psicodélica Vamos para o espaço como E aí, galera maluca? e Boa noite Cinderela também se destacam, cada uma com idéias bem particulares e bem trabalhadas, respectivamente, de sintetizadores semiprogressivos; riffs guitarreiros sobrepostos; e blues pesado, soturno e saturado de distorção, respectivamente. A bola cai em algumas faixas arrastadas, como Depois das duas e Não quero o seu perdão, com vocal sussurrado que soa meio como os de rap romântico.

Som foi mixado em Logic Audio
O som foi registrado abrindo até 40 canais da mesa Yamaha O2R, a mais usada no processo de gravação, com o sistema RME HDSP 9652, da 24 bits e 96kHz. O disco foi mixado na plataforma Logic Audio, da EMagic, que Carlos Trilha e Fernando Morello utilizam desde 1996. "Se bobear, fomos os primeiros a usar esta plataforma no Brasil", diz Morello. Já a masterização foi feita por Ricardo Garcia, Magic Master. 

Como arranjar um disco para tocá-lo ao vivo?
Com tantos instrumentos, como tocar o novo disco ao vivo? "Já pensei nisto, não seria mesmo possível eu tocar todas as guitarras como fiz no disco", diz Lobão, que, para os shows de lançamento, está montando uma banda com dois músicos que participaram do disco, Fernando Monteiro na segunda guitarra, Daniel Martins no baixo, mais um baterista e um tecladista, além de algumas programações. "Mas em algumas músicas posso mudar a formação, de acordo com o arranjo, como na que abre o disco (Pra sempre essa noite). Penso em pôr o baixo em sampler, Daniel na guitarra e Fernando no violão", explica.
Seu plano é tocar o disco inteiro, sem parar. "Assim como tem as faixas interligadas, quero fazer um show para apresentá-lo, tocando-o todo, na ordem, sem parar. Mandar 56 minutos direto, inclusive falando com a platéia apenas antes e depois da seqüência. Serve, inclusive, como instigação para o público, para estimular o pessoal a sair de casa para conhecer um trabalho novo, não apenas para se entreter com sucessos, como se fosse uma jukebox", desafia, admitindo tocar "uma música ou outra diferente no bis, mesmo assim, sem citar nenhuma muito conhecida do grande público. "De repente Para o mano Caetano ou Lullabye, talvez alguma outra possa rolar".
 
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