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Revista Luz & Cena
Músicos
Jaques Morelenbaum
Músico Fala da Experiência de Trabalhar com Mestres da Música Brasileira
Christiane Jordão
Publicado em 01/01/2000 - 00h00
André Luiz Mello
 (André Luiz Mello)
Não é todo mundo que tem a sorte de ter na memória dez anos de trabalho com o mestre Tom Jobim, mas Jaques Morelenbaum tem. Com vasta experiência como violoncelista, arranjador, orquestrador e compositor, ele está dentro da música desde que nasceu.
Jaques participou da ópera "Life", no final do ano passado, composta por Ryuichi Sakamoto, que falava do nosso futuro, das preocupações com a natureza e com a destruição que a humanidade vem promovendo. Trabalhou cinco anos com Egberto Gismonti, por quem tem muita admiração devido à semelhança com o trabalho de Villa-Lobos. Trabalha com Caetano Veloso, com quem teve maior projeção, e participa do Quarteto Jobim - Morelenbaum, onde relembra os sucessos de Tom. Fez diversas trilhas para filmes, como Tieta do Agreste, de Cacá Diegues, onde trabalhou como orquestrador, arranjador, produtor; Central do Brasil e por último, Orfeu. A M&T traz um pouco da experiência e da história do músico Jaques Morelenbaum.

M&T: Quem ou o que o despertou para a música, e como você começou?
Jaques Morelenbaum: Eu já nasci dentro da música. Meu pai era maestro, professor e violinista, minha mãe era pianista e professora de piano.
Eu comecei tocando piano aos seis anos, e aos doze comecei a estudar violoncelo. Durante um ano estudei os dois, mas acabei optando pelo segundo. Eu sempre tive muita vontade de estudar um instrumento melódico, pois meu pai trabalhava no Municipal como maestro e eu vivia dentro da orquestra, assistindo a concertos. Cheguei a pensar no oboé durante um bom tempo, mas um dia eu vinha de carro e ouvi no rádio uma sonata de Brandts, para violoncelo e piano, e isso me deu um estalo e escolhi o violoncelo.

M&T: Quais os músicos que o influenciaram?
Jaques: Milhões. Em qualquer área que você atue, procura se inspirar nos mestres. Meu maior exemplo é o meu pai, que era um ideal para mim, um símbolo de dedicação e de amor pela música. Desde garoto sou interessado por música popular, e por ter tido este berço erudito. As pessoas dizem que sou um erudito que passou a fazer popular, mas não concordo com isto. Eu tenho uma formação erudita, do mesmo jeito que tenho uma formação popular. Desde que comecei a me entender como músico, sou eclético. Na minha adolescência, os tropicalistas e os mineiros me influenciaram muito, e mais tarde, os cariocas da bossa nova. Nos clássicos, eu sempre tive uma certa preferência pelos impressionistas e românticos, por exemplo Stravinsky.

M&T: Dessa nova geração de músicos, tanto geral quanto os de violoncelo, quais os que lhe chamam atenção?
Jaques: Em termos gerais da música brasileira, eu fico muito impressionado pela criatividade do Carlinhos Brown e pela força de sua música. Tem o Lenine, que está conseguindo abrir espaço para mostrar sua arte. Gosto muito do trabalho da Vanessa da Mata, que me impressiona muito pela força da sua poesia. De violoncelo, gosto do Lui Coimbra, que há muitos anos vem se desenvolvendo nesta área. Há grupos como Rio Cello Ensemble, que utilizam o violoncelo dentro da música popular. No mundo afora, existem muitos violoncelistas que eu curto, como o Ioiomar. Tem o Antonio Menezes, que é um brasileiro fantástico, de quem na verdade eu gosto pelo calor com que interpreta as músicas.

M&T: Você descobriu novas utilizações do violoncelo tocando com o Caetano?
Jaques: Não especialmente com ele. Acho que no decorrer da minha trajetória, estou sempre buscando descobrir novas potencialidades no instrumento. Neste último trabalho que estou fazendo com o Caetano, o "Livro", talvez utilize o violoncelo de uma maneira que foi novidade para mim há muitos anos atrás, quando tocava num grupo chamado "Avoantes". O grupo foi criação do pianista Luisão Paiva, onde eu entrei para substituir um saxofonista. Eu tocava num naipe que era formado por três saxofones e um violoncelo e muitas vezes usava o violoncelo como um saxofone barítono. Às vezes usava o violoncelo como enriquecimento do timbre, e como esse disco do Caetano foi um disco basicamente orquestrado, é interessante usar novamente esta formação.

M&T: Você acha que a música que ele faz abre um maior espaço para o uso dos instrumentos eruditos?
Jaques: Os instrumentos eruditos, na verdade, não passam de instrumentos que ao longo da história foram usados para o erudito. O violoncelo veio da família dos violinos e os ciganos, há séculos, os usam para tocar música popular. Eu acho que o Caetano me procurou para enriquecer timbristicamente o seu trabalho. Em Tropicália, o Rogério Duprat utilizou muitos instrumentos sinfônicos, os Beatles utilizaram muito as orquestras, e também os músicos da bossa nova como Milton Nascimento utilizaram tanto orquestra.

M&T: Fale um pouco sobre a experiência de trabalhar com a ópera "Life".
Jaques: Esta ópera foi apresentada no final de 1999 e composta pelo Ryuichi Sakamoto, que tem uma vivência muito forte na área tecnológica e sinfônica da música. Ele trabalha com essa junção da música eletrônica e da música erudita, com os instrumentos acústicos. Ele planejou toda a obra e cada pessoa que ia chegando no Japão recebia funções estudadas e definidas. Eu trabalhei como solista e como parte da orquestra. Ensaiamos durante duas semanas. Na primeira semana foram ensaios mais setorizados, com a orquestra, depois com um trio inglês de cordas. Na segunda foram ensaios dos solistas e no final da semana as coisas começaram a se juntar, o coral, os bailarinos e toda parte do telão onde passava uma parte de vídeo e uma de computação gráfica.

M&T: Como você sentiu a receptividade dos japoneses?
Jaques: Era um trabalho universal, mas concebido por japoneses. O público parece frio para quem é brasileiro, pois eles são muito comedidos. Adoram a música mas não demostram isto. E esta ópera também não era um espetáculo da Broadway, era super sério. Falava do nosso futuro, das preocupações com a natureza, com a destruição que a humanidade vem promovendo, e mostrava muitas coisas duras do passado da humanidade, guerras, a destruição da natureza, fazendo com que as pessoas ficassem refletindo muito no término do espetáculo. O final tinha um tratamento quase que religioso. Apesar de uma reação muito respeitosa, havia um interesse enorme. Tivemos seis concertos em ginásios, todos esgotados com muitos meses de antecedência.

M&T: Fale dos artistas com que você mais gostou de trabalhar.
Jaques: Tenho uma vasta lista. Primeiro foi o Tom, com quem trabalhei dez anos. Quando fui ao primeiro ensaio dele, cheguei esperando que ele me dissesse alguma coisa, mas o ensaio começou sem ninguém me dizer nada, e no final perguntei sobre o que tocar, e ele me deu liberdade para tocar o que eu quisesse.
Outro ídolo meu é o Egberto, com quem trabalhei durante cinco anos. Ele é um super músico e compositor. Ele se inspira muito no Villa-Lobos e nos grandes mestres da música brasileira, ligando a música folclórica com a música popular brasileira e erudita. Tem o Caetano, com quem trabalho há sete anos e que me abriu muitas portas como arranjador. Meu primeiro trabalho com ele foi o "Circuladô", no qual, além de fazer um arranjo para o disco de estúdio, fui convidado para fazer o show com ele. Depois veio com projeto do "Fina Estampa", onde arranjei todo o disco. Trabalhei como compositor, fizemos o "Livro", gravado ao vivo. É um trabalho que me dá grande prazer e inspiração. Trabalhei com a Gal Costa como arranjador, diretor musical, violoncelista. Fiz o disco "Mina d'água do meu canto", onde ela interpreta só Caetano e Chico.

M&T: Como você acha que Tom Jobim e Egberto Gismonti contribuíram para a música brasileira?
Jaques: Com o talento e o dom muito especial que cada um tem. O Egberto é um grande instrumentista, tem uma facilidade enorme para tocar tanto piano como violão. Para mim ele é o continuador da obra e do enfoque que o Villa Lobos dava à música. Ele tem muito a ver com a visão do Villa Lobos, de beber dessa fonte popular do Brasil, desconectado da indústria da música.
O Tom é o grande gênio brasileiro, é o talento excepcional. Tudo que ele fazia era bonito. Ele me ensinou sobre o amor à natureza, sobre ecologia, o futuro, e como músico ampliou muito a minha visão harmônica sobre a orquestração. Ele conseguia falar tanto usando tão poucos elementos...

M&T: Quais as trilhas de filmes que você já fez?
Jaques: Minha primeira trilha foi para um filme do Carlos Delfino, "República dos Anjos", onde utilizei só os sintetizadores. Depois veio o "Quatrilho", filme de Fábio Barreto, que colaborei como compositor, arranjador, fui parceiro do Caetano numa canção, fiz toda a orquestração e produção. Depois veio "Tieta do Agreste", do Cacá Diegues, onde também trabalhei como orquestrador, arranjador, produtor e em "Central do Brasil". Por último tem "Orfeu", onde eu produzi a parte orquestral, apesar de considerar a parte da orquestração um trabalho de composição, mas quem assinou foi o Caetano.

M&T: Qual a diferença de fazer uma trilha sonora para filme e para orquestra?
Jaques: A parte estritamente musical não tem tanta diferença, na trilha a música serve para vestir uma cena, para exacerbar o lado emocional. Você não trabalha com abstração total. Trabalha por encomenda, tendo uma preocupação em adequar aquela música a uma limitação de tempo, pois a cena tem início, meio e fim. Na composição para a orquestra você esta completamente solto e tem liberdade total nestes termos.

M&T: Você tem alguma ligação com tecnologia musical e áudio?
Jaques: Eu estou começando a entrar nesta área de áudio. Trabalho com tecnologia há quase 15 anos. Quando comprei meu primeiro teclado, comprei também um computador, e acabei me tornando viciado em informática. Só escrevo música no computador, o que me dá uma maior independência. Estou engatinhando nesta área de trabalhar sozinho, geralmente trabalho com um técnico ou com um engenheiro que mexe com isso.

M&T: Você pretende montar um estúdio em casa?
Jaques: É meu sonho de consumo. Eu tenho um estúdio, mas é para compor e arranjar. Estou começando a trabalhar com áudio. Na verdade sempre trabalhei com aparelho de DAT ou de CD, pois quando faço arranjo para música popular eu pego a base para ficar ouvindo enquanto escrevo. Agora coloco a base dentro do computador e trabalho em cima dela.

M&T: Na década de 70/80, quando os samplers foram descobertos, os músicos e os percussionistas ficaram meio esquecidos. Agora as pessoas querem ouvir música de verdade e os samplers estão ficando de lado. O que você acha disto?
Jaques: A samplerização é fascinante, mas para funcionar tem que ser muito bem usada, e o que a gente viu é que o sampler foi usado muito mal pela maioria dos músicos, e bem por uma minoria. Nele você pode gravar todos os instrumentos, mas nunca vai se equiparar ao instrumento tocado ao vivo. Cada um tem vários tipos de articulação e de ataques. Um sample de violoncelo, para ser o mais real possível, teria que atacar cada nota de várias maneiras diferentes, com força, com vibrato e não é o que se vê. A razão de as pessoas sentirem a vontade de ouvir os músicos é porque cada nota que é tocada tem uma maneira de ser emitida, que é única. Em um sampler, você tem as expressões muito limitadas, e a música passa a ser superficial.

M&T: Você utiliza violoncelo amplificado?
Jaques: No momento eu estou utilizando um violoncelo que acabei de ganhar da Yamaha, enquanto estava no Japão. Utilizo a amplificação do violoncelo há mais de 20 anos, mas ela limita muito a gama dinâmica do instrumento. Você não tem nem o pianíssimo nem o fortíssimo, tem uma área dinâmica mediana. O violoncelo tem um som tão rico e bonito em harmônicos que é sempre muito difícil trabalhar com ele amplificado. O violoncelo é um instrumento acústico, então tem aquela caixa de ressonância gigantesca, onde, além de amplificar o próprio som do instrumento, todos os sons fortes do palco entram, dando muito trabalho com o feedback. Este instrumento da Yamaha é sem corpo, mas tem toda a estrutura do violoncelo. A captação dele é feita em baixo do cavalete, que é uma peça onde repousam as cordas, mas o som não se compara com o do violoncelo acústico


 
Jaques Morelenbaum como o violoncelo que ganhou da Yamaha

M&T: Você tem participação na escolha dos microfones para seu violoncelo?
Jaques: Normalmente não tenho participação. Sou mais especialista na minha ciência, que é a criação musical, composição e arranjo. Não tenho muito conhecimento desta área, trabalho com engenheiros em quem confio e sou um pouco preguiçoso para decorar nomes de microfones.

M&T: Você não acha que a microfonação acaba um pouco com os harmônicos, com a delicadeza do violoncelo e com o timbre?
Jaques: Em um show ao vivo, o violoncelo perde muito porque temos que trabalhar com microfones mais direcionais e mais fechados, justamente porque ele não pode ter uma emissão muito forte. Em estúdio uma boa microfonação mantém todos os timbres. Você tem condição de trabalhar com os microfones mais sensíveis, preservando o som.

M&T: A música brasileira nos EUA é vista como ou Bossa Nova ou World Music. Como você acha que a sua música se encaixa?
Jaques: Eu não trabalho em nenhuma área específica. Não gosto da setorização e faço minha música sem a preocupação de ver como o mercado americano está me vendo. A minha preocupação é fazer uma música da mais alta qualidade possível, com uma gama de acabamento melhor. Quero que ela tenha inteligência.

M&T: Fale um pouco sobre seu trabalho no quarteto Jobim - Morelenbaum.
Jaques: A gente tem uma intimidade enorme com o Tom por estes anos todos de convivência. Eu e a Paula Morelenbaum tocamos com ele dez anos; o Paulo e o Daniel pelos laços familiares. O Paulo trabalhou muitos anos com ele, o Daniel também como produtor, além de nascer ouvindo o avô tocar. A nossa idéia é dividir com o público esta intimidade que a gente tinha, o nosso conhecimento sobre a idéia musical do Tom. O quarteto nos serve também como forma de não abandonar esta música que a gente ama. O Tom se foi em termos físicos, mas a música dele ficou, e é uma grande riqueza para a gente e acho que não saberíamos viver sem estar em contato direto com esta música.

M&T: Como vocês pensaram este disco?
Jaques: Bem, este disco é conseqüência do trabalho que a gente tem feito há alguns anos. Fizemos algumas turnês lá fora e alguns shows pelo Brasil, e o disco é o retrato do que é o nosso show ao vivo, com poucos elementos, só o quarteto mais um percussionista. Gravamos as bases todas, fizemos só as vozes separadas, não colocamos arranjo em cima; é bem o quarteto de cinco.

M&T: Quais os últimos trabalhos que você fez?
Jaques: Os últimos trabalhos foram o primeiro disco do quarteto, que a gente está lançando pela Velas agora. Fizemos shows em São Paulo e no Rio, vamos começar a viajar pelo Brasil para lançar este disco. Tenho trabalhado com o Caetano, com o show "Livro", há quase dois anos. Fiz esta ópera do Sakamoto. Tenho sido requisitado por alguns artistas lá no Japão. Trabalhei no último disco da Cesaria Évora como arranjador, da Dulce Pontes, que é cantora portuguesa, e do Rui Veloso, que é um compositor português.

M&T: E para o futuro?
Jaques: Vou continuar este lançamento do disco do quarteto, e estamos planejando, além de rodar o Brasil, fazer uma turnê pelos EUA e Europa. Pretendo escrever mais para cinema e escrever muitos arranjos, além de continuar e quero continuar me expressando através do violoncelo.
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