Na maioria dos casos, o sonho de todo mundo que faz shows de pequeno porte é fazer um show gigante em ginásio ou estádio. Não só a oportunidade que ainda não chegou como a teórica grande complexidade de um evento desse tamanho fazem com que estes engenheiros de mixagem acabem ficando limitados a shows e eventos em barzinhos.
Eu acho que nos últimos oito anos da minha vida, desde que comecei a fazer shows de grande porte, a pergunta que mais ouvi foi: "Nossa! você sabe mexer em todos esses botões?". Realmente, uma mesa de grande porte, tanto em estúdio quanto ao vivo, assusta. São tantos botões que a cabine do avião deixa de ter a mesma graça que tinha...Mas, ao contrário do que se pensa, cada botão que existe serve pra facilitar nossas vidas, e não para atrapalhar. E a gente não é obrigado a usar todos eles, claro (sempre achei muito, mas muito mais fácil gravar um projeto em um estúdio grande do que em um pequeno "porta-estúdio" daqueles Tascam dos anos 80. Os porta-estúdios tinham diversos modos de operação em um equipamentinho minúsculo, onde cada botão e cada fader serviam pra várias funções diferentes, uma desgraça).
Então, semana passada tive a oportunidade de concluir que um engenheiro e um show "pequenos" evoluírem para um evento grande é muito mais fácil do que o oposto. Fiz um evento com o Djavan no restaurante Mistura Fina, no Rio de Janeiro. Foi um pocket show (show pequeno), gravado ao vivo para MD para uma emissora de rádio transmitir como um show exclusivo deles posteriormente. E, realmente, fazer todos os móveis de uma casa de sete quartos caberem num sala-e-quarto não foi uma tarefa fácil.
Na presente turnê Vaidade de Djavan, viajamos com o mesmo equipamento sempre. Mesas de grande porte, analógica no PA e digital no monitor. PA de grande porte. Mais caixas para coberturas de "pontos cegos" onde o PA não cobre com clareza, efeitos à vontade. EQ à vontade...Toda a monitoração de palco in-ear e sem fio sendo feita por outro engenheiro que cuida só disso (Jorginho Carvalho). E, além disso tudo, ainda existe uma diferença que talvez seja a maior delas: o público ouve quase que exclusivamente o PA. Ou seja, o que "vaza" do palco acusticamente para a platéia é tão pouco que chega a ser considerado insignificante. Então, a mixagem de fato é feita na mesa. Ela existe.
Claro que, mesmo em um show grande assim, a mixagem tem que respeitar a acústica da casa e isso não tem lá tantas regras: vai totalmente pelo bom senso do que o "mixer" (engenheiro) está ouvindo. Então, se estamos em um ginásio com acústica ultra-reverberante, a tendência é a gente não encher mais a mix de reverbs artificiais, pois eles já existem lá no local, inteiramente grátis. Outro exemplo: se é uma sala com muitas freqüências graves estacionárias e com alta absorção das freqüências mais altas, a tendência é mixarmos com "menos" peso nos graves, tentando definir ao máximo a média-alta para que a voz fique bem inteligível. Porém, com tudo isso, ainda é fácil, comparando com um show em barzinho (acreditem). Temos mais equipamento, quase nenhum vazamento de palco atrapalhando e um engenheiro pra cuidar só da monitoração do palco.
Agora, vamos à migração: de repente, a equipe do Djavan, no meio da turnê, se encontra num "barzinho" para fazer praticamente o mesmo show, porém com menos músicas. Mesa de monitor? Nada... Tinha uma mesinha de PA e ponto final. Não, não estou falando mal do equipamento. O Mistura tem tudo que eles precisam para fazer os shows naquele espaço; a adaptação é que não é fácil. Precisamos eu, Jorginho Carvalho e toda a equipe de Djavan de boas doses de bom senso e inteligência em meio a tantas decisões sobre o que saía e o que ficava, quem ouvia o quê, e como. E, acima de tudo,... "Precisa estar na mix, ou já está sendo ouvido acusticamente ?" - tanto no PA quanto no monitor.
O palco é extremamente pequeno (comparando com os palcos de ginásios, claro). Então, os músicos ficam juntinhos e já se ouvem bem entre eles. Ao contrário de um palco gigante, onde os músicos só ouvem o que o engenheiro de monitor mixa para suas vias de monitoração. No Mistura, o palco tem alguns centímetros de altura e o público tá logo ali "na cara". Então, não só a primeira fila como também a última ouvem perfeitamente bem o que está acontecendo ali, já acusticamente. E, como o palco é na "quina" da sala, em um dos cantos, existe uma reflexão esperada de freqüências graves.
Então, como mixar isso? A parte mais complicada: havia três mixagens diferentes a serem feitas, dois engenheiros e apenas uma mesinha. Minha função ali era realmente mixar o que estava sendo gravado para a rádio. Mas é claro que, por mais que eu respeitasse a ordem de importância, tinha que lembrar que os músicos também teriam que se ouvir (apesar de já ouvirem bastante acusticamente entre si). Ah, e o público também merecia, claro, ouvir o show para que os músicos merecessem então ouvir alguns aplausos...
Alinhei o PA como de costume. Porém, como o EQ da mesa era extremamente limitado, e o PA serviria acima de tudo para sonorizar a voz do Djavan (porque o resto já era bastante ouvido acusticamente do palco), fiz um alinhamento priorizando o timbre da voz. A saída master da mesa alimentava um compressorzinho e então a entrada do gravador de minidisc. Esse compressor era apenas para me possibilitar gravar com um pouquinho mais de nível e proteger a gravação de possíveis picos durante o show. Optei por o master da mesa alimentar o MD, porque assim eu poderia mixar a gravação pelos faders, já que esta era a prioridade.
Como o PA estaria apenas sonorizando o que "faltasse" do vazamento acústico do palco pra platéia, optei por fazer uma coisa bem atípica. A mix do PA era feita em um dos auxiliares pré-fader, claro. Assim, eu podia mixar meu minidisc à vontade e de vez em quando tirava meu phone pra ouvir como estava o som da casa. Se faltasse mais voz, eu aumentava um pouquinho seu auxiliar, que mixava o PA. Na verdade, a mixagem do PA não continha muita coisa: basicamente voz, um pouco de bumbo e baixo para que conseguíssemos um peso definido nos graves, um pouquinho de sax e um pouco de teclados, já que o Renatinho Fonseca estava lá no fundo do palco, e ainda que desse pra ouvir da platéia sua caixa de monitoração, eu sentia que podia ter um pouquinho a mais para definir os teclados. Ou seja, se eu enviasse pro PA a mesma mix que eu enviava para o MD, eu teria um show insuportavelmente alto, e provavelmente, jamais conseguisse fazer a voz do Djavan ser ouvida. Seria um péssimo negócio.
A mix do PA estava bem redondinha só com o que "faltava" do palco. A mix da gravação no minidisc estava ótima, sendo feita nos faders da mesa e conferida nos headphones. E a monitoração? Bem, o Jorginho, depois de "montar" e configurar os monitores no palco, veio pra mesa de PA mixar o monitor de lá, comigo. Sim, uma mixagem a quatro mãos (risos). Era bem pouco nos monitores, já que estavam todos os músicos tão perto uns dos outros, como disse antes. Como eu ficava de fone quase o tempo todo, Jorginho deu uma boa ajuda no PA também, já que este agia quase como um monitor para a platéia! Deu tudo certo a não ser por um microfone sem fio de Djavan, que resolveu se aposentar logo na hora em que o microfone reserva estava nas mãos do entrevistador do programa, mas nada que não tivesse uma solução rápida com bom humor de todos.
Sim, concluí que fazer shows grandes é muito mais fácil. Principalmente quando se trata de um show que foi concebido para ser grande. Mas foi bem divertido ir achando as soluções, as melhores maneiras de adaptação. E concluí também que não é o tamanho do show ou do equipamento que faz a grandeza do espetáculo ou do trabalho. Além da parte artística, é também a capacidade de toda a equipe em julgar com inteligência a melhor maneira de fazer tudo funcionar, a partir do que se ouve.
Enrico De Paoli é "mixer" de discos e shows. Seu último projeto foi o CD Vaidade, de Djavan, com quem está em turnê neste momento.
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