A cada nova invenção ou moda, sempre há uma discussão sobre a obsolescência de ferramentas e padrões antigos. Foi assim quando a televisão apareceu ("O rádio vai sumir!"), quando a música eletrônica virou febre ("O rock morreu"), ainda tem sido assim em relação à Internet, que muitos acreditam ser o instrumento de comunicação e multimídia único do futuro. Com o aparecimento de gravadores digitais multipistas como o ADAT e de workstations como Pro Tools, Sadie, Fairlight e Sonic Solutions (além de dezenas de softwares), as gravações passaram a ser mais acessíveis técnica e economicamente. A simplicidade das novas tecnologias acabou encaminhando-as para os estúdios caseiros. Com investimentos mais modestos, sem perder a qualidade, e uma atmosfera mais informal, vários artistas têm optado pela criação em lugares menores, mas com uma infraestrutura para fazer um produto de qualidade.
Novas Rotinas
Max de Castro alugou uma casa por três meses para fazer seu disco Samba Raro, complementando as gravações feitas em sua própria casa. Roberto Frejat começou a construir seu estúdio em 1997 e, em setembro, lançou o seu primeiro álbum solo, Frejat, praticamente feito nele. Seu Jorge (ex-Farofa Carioca) levou a mãe para uma casa no bairro das Laranjeiras, Rio de Janeiro, onde ela ficou cozinhando para técnicos e músicos durante as gravações de Samba Esporte Fino (Regata Música). Tudo isso faz parte de uma ambiência que começa a ganhar cada vez mais espaço no Brasil e traz consigo uma nova metodologia de trabalho que inclui mais flexibilidade em alguns passos da construção de um disco. O estúdio onde Seu Jorge gravou Samba Esporte Fino foi montado pelo grupo Planet Hemp e é supervisionado pelo engenheiro de gravação e PA da banda, Kléber França, que ajudou a escolher os equipamentos e agora praticamente só trabalha no local.
Rodrigo Vidal: negociação do engenheiro diretamente com o dono do estúdio
O clima da casa dá espaço para um cronograma que pode ser ajustado ao horário do Globo Esporte, idas do pessoal à praia e passeios com os filhos sem prejudicar o trabalho. O tempo é controlado de uma forma mais livre. Esta é uma das principais vantagens apontadas pelos que usam os chamados estúdios caseiros. "Em casa, o ambiente é nosso. É perfeito. Nosso universo", comenta Enrico de Paoli, engenheiro áudio que já trabalhou com Liminha e Djavan e que tem um estúdio em casa, na Califórnia. Sem o taxímetro dos estúdios convencionais, músicos e produtores têm mais liberdade para interrupções sem amarrar criatividade e inspiração a horários programados. A dependência do staff que trabalha nos grandes estúdios também é um fator que prende os artistas aos esquemas destes locais. Com um número menor de pessoas envolvidas nas gravações e mixagens, torna-se mais fácil montar um cronograma e a descontração é maior.
Frejat, Marcelo Bonfá, Skank e Chico Neves: estúdios para suas próprias produções
O relacionamento entre os músicos e seus engenheiros vira uma parceria que começa na elaboração das idéias para o estúdio. O trabalho de pesquisa é fundamental para compensar o investimento, que pode atingir altas quantias de acordo com a qualidade dos materiais utilizados. O engenheiro de áudio do Barão Vermelho, Renato Muñoz, além de cuidar das gravações da banda e do som na estrada, participou ativamente da montagem do estúdio Du' Brou, de Roberto Frejat, no bairro da Lagoa, no Rio de Janeiro, e interfere na sua atualização. Os dois são praticamente os responsáveis pela procura de equipamentos novos através da leitura de revistas especializadas, indicações e Internet. Com isso, os testes feitos no estúdio são numerosos e constantes. O primeiro disco solo de Frejat (Amor Pra Recomeçar, Warner), lançado em setembro, foi finalizado no estúdio Nas Nuvens, mas 90% dele foi feito na Lagoa e no estúdio do produtor Tom Capone, Toca do Bandido, no bairro do Itanhangá (Rio). O HD onde o disco era gravado fazia o circuito entre os dois bairros com freqüência, o que acaba sendo muito mais prático do que locomover fitas de 2" entre vários lugares.
A atualização do equipamento tem que ser feita por um especialista, em função da sua familiaridade com mesas de som, microfones, softwares, monitores etc.. "Se o técnico sente que está precisando de alguma coisa que saiu no mercado, ou mesmo de estrutura, modo de funcionar, operação e pessoal no estúdio, acho que é fundamental negociar este tipo de coisa com o dono ou com o gerente do lugar. Porque o engenheiro é que está sentindo isso diretamente", comenta Rodrigo Vidal, engenheiro de áudio contratado pelo estúdio Tambor, de João Augusto (ex- EMI e atual diretor artístico da Abril Music).
O barateamento de custos acaba sendo relativo, no entanto, já que a atualização é sempre necessária. A Toca do Bandido, de Tom Capone, é bem servida em termos de equipamento, e só se aproxima do que é chamado de estúdio caseiro por se localizar na casa do produtor. Para Renato Muñoz, o estúdio de Frejat é o mais bem equipado entre os que têm uma proposta não comercial, de tamanho modesto e ambiente informal.
Álvaro Alencar: "Além de um bom nível é preciso saber lidar com a situação em estúdio, com as pessoas"
Estúdios Também Servem de Aprendizado para Iniciantes
Com tantas idéias dentro do estúdio, cabe aos engenheiros a tarefa de separar o que é pertinente do que não pode ser aproveitado e é fruto do amadorismo de músicos que tentam se aventurar pelo processo de produção de um álbum. Muitas sugestões dos artistas acabam não sendo úteis ou viáveis, mas, mesmo assim, os profissionais muitas vezes têm que demonstrar na prática o porquê da impossibilidade de realizar uma certa idéia. "A desvantagem é que agora todo mundo é produtor e engenheiro de som, aí você pira com isso. Vêm umas idéias de outro mundo. Você grava um disco com 15 produtores. Todo mundo chega dando palpite", comenta Kléber França. A experiência conta nessas horas, uma vez que por mais que alguns artistas saibam lidar com as etapas de produção, eles não têm uma especialização tão grande quanto quem põe a mão na mesa de som. Neste relacionamento, o que também conta muito é a maneira como o produtor conduz os palpites dados pelos músicos, tentando ao máximo fazer com que isso não atrapalhe o seu trabalho, o que nem sempre é possível. "Atrapalha, mas na vida de engenheiro de estúdio, mesmo de PA, você tem que ser social. Não adianta bater no peito e dizer: 'Cala a boca todo mundo! Quem manda aqui sou eu!'. A pessoa tem que saber levar", diz Kléber.
Marcos Ferrari: "Com o Pro Tools você faz um disco no seu quarto. Ser bom ou ruim, já é questão de gosto"
Os novos estúdios servem de campo de aprendizado para iniciantes (ou profissionais) que mais tarde podem tentar uma chance em estúdios consagrados. E nestes locais, de acordo com Álvaro Alencar, engenheiro de gravação do estúdio de Tom Capone, a tarimba dos profissionais para lidar com o ambiente da produção é maior, tendo em vista o preparo necessário para trabalhar neles. Preparo que não se restringe somente ao conhecimento técnico. "Alguns lugares têm mais manha de formar um pessoal novo do que outros. Todo mundo que eu encontrei que passou pelo Nas Nuvens tem um bom nível. Não somente em relação à parte técnica, mas um saber lidar com a situação em estúdio, com as pessoas, com o jeito como a sessão está acontecendo. Um pessoal preparado psicologicamente, com um feeling bom", diz Álvaro.
Assim como aconteceu quando do lançamento do gravador digital multipista ADAT, a possibilidade de se fazer um disco em casa ficou mais acessível para os que dispõem de ferramentas tecnológicas como o Pro Tools. A facilidade proporcionada por ele simplificou a produção em termos de pessoal envolvido e horas de estúdio, reduzindo os custos. O mercado ficou mais abrangente, passando a receber produções menores que podem ser feitas dentro de um quarto ou sala, com apenas um computador e algumas idéias. Foi desta forma que os discos de Max de Castro, Wilson Simoninha e Marcos Suzano foram concebidos. "Gravamos alguns discos assim, colocando uns cases, cobrindo com algumas cobertas e tapetes", diz Marcos Ferrari, engenheiro de áudio da gravadora Trama, mostrando o despojamento até na montagem e organização dos equipamentos. Para ele, é possível utilizar métodos simples, como gravações nos mais diversos locais, para obter um bom resultado. "Acho que hoje em dia com o Pro Tools você faz um disco no seu quarto, de fone no computador. É um disco, seja ele bom ou ruim, é questão de gosto", completa.
Renato Muñoz: "Todo mundo acha que é engenheiro. A maior reclamação de quem masteriza é o tempo gasto corrigindo problemas"
Estúdio Não é Só a Mídia de Gravação
É unânime entre os profissionais de estúdio a opinião de que não somente com o Pro Tools, mas também com softwares e workstations de outras marcas, o número de pretendentes a produtores cresceu muito. Muitos acham que só com essas ferramentas já têm nas mãos um estúdio completo, sem considerar toda a infra-estrutura indispensável para gravações, mixagens e masterizações. O planejamento acústico, nem sempre realizado com tanta minuciosidade em projetos caseiros, faz uma grande diferença e é apontado por Álvaro Alencar como a única deficiência do estúdio de Tom Capone, mas que já está para ser resolvida. "O estúdio não é só a mídia de gravação. Existe toda uma estrutura de manutenção, uma obra acústica para se captar o som da melhor forma possível, microfones caríssimos...", diz Rodrigo Vidal. "Não basta ter um Pro Tools se a pessoa não tiver um microfone bom, um pré, uma sala legais. Então as pessoas acham que tendo só um Pro Tools em casa têm um estúdio. Mas muita gente tem estúdios caseiros de altíssima qualidade e assim economiza muito. Gravar em casa o violão, a guitarra, refazer o contra-baixo, até mesmo a voz, que são coisas que não precisam de uma sala muito grande. E então depois voltar para um estúdio grande para mixar o disco", acrescenta.
A questão das gravações ainda prende muitos músicos aos estúdios maiores e seus equipamentos, que muitas vezes se tornam insubstituíveis, principalmente nas finalizações dos discos. "A partir do momento em que muitos estúdios caseiros estão sendo feitos, todo mundo acha que é engenheiro agora. Isso é um problema muito sério. A maior reclamação dos profissionais (de masterização e de mixagem) hoje em dia é o grande gasto de tempo corrigindo gravações", declara Renato Muñoz, que diz ter aderido ao Pro Tools pelas facilidades e pelo resultado, mas nem por isso dispensou os equipamentos do estúdio Nas Nuvens na finalização do álbum de Frejat. As gravações que aparecem para engenheiros e produtores muitas vezes representam um tormento que nem sempre tem solução.
Erros básicos são encontrados em muitos dos materiais que chegam às mãos dos engenheiros de áudio. Denilson Campos, engenheiro que, no momento, cuida do PA dos shows de Lenine, já enfrentou gravações impossíveis de serem salvas e que, mesmo assim, foram lançadas. "Para masterizar foi muito ruim porque havia coisas distorcidas, erros básicos. A pessoa tocava e gravava ao mesmo tempo. Então não é possível prestar atenção nas duas coisas ao mesmo tempo. Você escuta e não sabe para onde vai".
Denilson Campos: "Apertador de botão tem muito por aí. O cara que senta na mesa e tira o som é outro"
A dualidade entre as vantagens trazidas pelos estúdios caseiros e o fracasso de algumas produções demasiado informais ainda não tiveram efeito muito significativo no mercado dos engenheiros de som. De uma forma ou de outra, a figura destas pessoas acaba sendo sempre necessária, já que a partir deles saem os comandos centrais para, no mínimo, uma boa finalização do trabalho. Mesmo na gravadora Trama, onde o número de produções que têm o tom de independentes é maior do que em outros lugares, a arte final do produto muitas vezes acaba nas grandes mesas de som dos estúdios comerciais. Marcos Ferrari conta que nunca teve uma experiência ruim com uma gravação, mas na hora da mixagem não dispensa uma console maior. "No final, tem que passar em uma Neve ou em uma SSL. Da mixagem de um disco vem a grande diferença. A gravação não interfere tanto".
Na opinião de Denilson Campos, como este processo ainda está no início, o mercado pode fazer um movimento de retração, como se não precisasse dos técnicos, mas com o tempo as pessoas irão perceber que necessitam de uma pessoa para pilotar a produção. "É necessário um cara que saiba e entenda o que está acontecendo o tempo todo. E que não é só um apertador de botão. Apertador de botão tem muito por aí. O cara que senta na mesa e tira o som é outro", opina. Para Álvaro Alencar, esta fase já está passando, e os músicos estão usando as novas opções para dar certos retoques ao disco. "Os próprios artistas que já passaram por essa fase de gravar o disco em casa já voltaram aos grandes estúdios. E estão usando workstations e softwares como ferramentas de edição em casa, para gravar pequenos detalhes, como coisas eletrônicas e de programação que não dependem de acústica nem de microfonação. A estrutura do estúdio grande e a parte acústica são importantes no produto final".
Enrico De Paoli: Os grandes e os pequenos estúdios se completam
Sem o Lobby da Área Artística
Com a introdução desse modo mais simples de se produzir música, as mudanças no esquema de trabalho não foram muitas. O mercado continua povoado de engenheiros que tiveram formação profissional em cursos (alguns deles no exterior) ou através do aprendizado no estúdio, muitas vezes fazendo o disco de suas próprias bandas. A experiência é o que ainda conta para ingressar em um estúdio de grande porte, como os cariocas Mega e AR. O surgimento das produções caseiras aumenta o número de produtores em potencial, mas isso não garante que eles terão vida longa ou afirmação no mercado. Através de um trabalho bem sucedido, pessoas que até então não teriam chances de trabalhar em um estúdio maior passam a ter um reconhecimento proporcional ao êxito do produto.
Deste modo, a crescente informalidade do mercado de áudio não representa o seu fechamento, ainda que a figura de um profissional com mais experiência permaneça extremamente importante. "Entrar neste mercado não é diferente de entrar em qualquer outro mercado no Brasil. É muito uma questão de competência, por outro lado, de sorte; conhecer as pessoas certas, fazer o trabalho certo na hora certa, ganhar projeção. A situação financeira do mercado é um problema aqui, porque apesar de ter melhorado muito, ainda é uma profissão relativamente mal remunerada", comenta Álvaro Alencar.
Enrico De Paoli acredita que os dois tipos de estúdio se completam, tendo em vista que o caseiro aumentou a quantidade de pessoas que gravam discos e que podem vir a se tornar clientes dos estúdios maiores para outros trabalhos. "Tem lugar para todo mundo. Se mantém e se destaca quem é bom em alguma coisa. Nos outros meios todo mundo vive muito de lobby, de social, mas isso acontece mais do lado artístico. Mas daí a sentar na frente de uma mesa... Quem está sentado à mesa, está sentado há dez anos, vai estar sentado lá por 20 anos", afirma Kléber França.
Só o tempo vai mostrar se o número de bons profissionais aumentou ou se as produções caseiras foram apenas mais uma alternativa de se produzir os discos.