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Revista Luz & Cena
Gravação
GUITARRA SEM AMPLIFICADOR
O Impossível ao seu alcance
Sólon do Valle
Publicado em 02/01/2002 - 00h00
divulgação
 (divulgação)
Quero começar esta matéria reafirmando que sempre fui radicalmente contra a gravação da guitarra elétrica sem amplificador, usando o famigerado direct box e entrando direto na mesa de áudio.
A guitarra elétrica e a guitarra acústica - o bem amado violão - são instrumentos completamente diferentes, apesar da gritante semelhança física, e de o modo de se tocar ser aproximadamente o mesmo. Enquanto no violão se deseja o máximo de fidelidade à rica sonoridade natural, na guitarra elétrica modifica-se deliberadamente o som das cordas para se obter agressividade, suavidade, peso, leveza, sustentação, ataque, timbre ou o que mais você quiser.
Portanto, a gravação fiel do som da guitarra é tudo que não se quer, e o amplificador é peça fundamental nessa transformação. Mas, e quando não se pode usar um amplificador? Ou quando o amplificador sonhado não é compatível com o bolso? Ou quando precisamos de vários amps diferentes?
Embora acredite que nada substitua um bom valvulado, creio também que, muitas vezes, podemos "enganar" os ouvintes simulando o comportamento pouco comportado de um bom e quente amplificador.

A Guitarra
A guitarra acústica, ou violão (Brasil), ou ainda viola (Portugal) pode ter seis, sete ou doze cordas - embora possa haver variações "oficiais" como a viola caipira de dez cordas, ou outras conforme o desejo do inventor. Essas cordas são presas ao tampo estruturado de madeira, que vibra intensamente amplificando a vibração das cordas. Todos os harmônicos da vibração das cordas são transmitidos ao tampo e amplificados, dando origem ao lindo som do instrumento. Os violões aparecem em vários tamanhos e formatos, dos quais os mais conhecidos são o Robledo (ou guitarra espanhola, que é o violão clássico, usado em geral com cordas de nylon), o Dreadnought (violão folk) e o Jumbo (violões enormes, com cordas de aço, usados em música folk, country e no rock - mesmas aplicações do folk). Há ainda o baixolão, de quatro ou cinco cordas, que embora sendo fisicamente um violão, é maior, tem escala longa, e é afinado e tocado de forma igual à do contrabaixo elétrico. A grande maioria dos violões comerciais de boa qualidade, hoje, já vem equipada com captadores piezoelétricos, montados sob o rastilho (peça da ponte onde as cordas se apoiam). Este captador coleta o som no mesmo local que o tampo, portanto o sinal produzido é bastante fiel à vibração das cordas, carregando todos os harmônicos e detalhes. Note que, para este captador funcionar, o violão não precisa ser acústico, pois é captada diretamente a vibração das cordas; mas se o instrumento é acústico, a interação entre as cordas e o tampo é transmitida ao captador, enriquecendo sua sonoridade. As cordas podem também ser de qualquer material. Para a reprodução deste sinal, geralmente se usa o mínimo de efeitos, e o máximo de transparência para que o resultado seja muito fiel ao som do instrumento "ideal".
 
Três modelos clássicos: Gibson ES335- semi-acústica com humbuckers; Gibson ES175 - acústica com humbuckers, e Fender Stratocaster - sólida com singles coils

Entre as guitarras elétricas, a diversificação é maior. As guitarras podem ser de corpo sólido, como a Fender Stratocaster, ou acústicas, como a Gibson L5, usada por muitos músicos de jazz. Existem as chamadas "semi-acústicas", como a Gibson ES335 e suas derivadas, como a Lucille de B. B. King, que têm aparência de acústicas mas que são na verdade guitarras sólidas no centro, com um corpo oco em volta para obter o visual das acústicas. As semi-acústicas têm som intermediário entre as sólidas e as acústicas, por motivos óbvios.
Os tipos de madeira usados na construção, o projeto da ponte e os diferentes estilos de cordas modificam profundamente a sonoridade de uma guitarra elétrica, tornando-a adequada a um ou outro tipo de música e de músico. Não pense que, por ser sólida, uma guitarra é uma coisa fria que não vibra. Ela também tem vida - pergunte a qualquer músico. Certos fabricantes oferecem o mesmo modelo em madeiras diferentes, cada qual com sua própria personalidade sonora.
Os captadores da guitarra funcionam de maneira totalmente diferente dos captadores de violão. Eles são magnéticos, operando pelo princípio da relutância variável: uma bobina de fio finíssimo é colocada em torno de ímã(s), e qualquer objeto magneticamente ativo (no caso, a corda de aço especial) que se movimente na vizinhança faz variar o fluxo magnético através da bobina, produzindo uma tensão elétrica em seus terminais. Essa tensão, é claro, tem a mesma freqüência fundamental que a vibração. Porém, como a captação é extremamente localizada, apenas as freqüências existentes no trecho da corda perto do captador são reproduzidas. Por isso, a maioria das guitarras tem dois ou três captadores; cada um deles cobre um pequeno trecho da corda, e reproduz apenas as freqüências existentes naquele trecho. Portanto, cada captador tem uma sonoridade própria. O captador próximo à ponte, onde a amplitude das freqüências baixas é pequena, tem um timbre muito mais agudo. Os outros captam bem mais graves, mas ainda têm timbres distintos porque realçam e atenuam freqüências diferentes cada um. Além disso, em cada trecho da corda, a mesma freqüência tem fases diferentes. Isto faz com que, ao se ligar mais de um captador ao mesmo tempo, haja cancelamentos em algumas freqüências e reforços em outras, criando um padrão (formante) totalmente diferente do de cada captador em separado. Por exemplo, quem conhece as guitarras de três captadores sabe que o som do captador junto ao braço e o som do captador do meio são razoavelmente parecidos entre si, mas que o som de sua combinação é totalmente diferente do som de cada um deles. Ainda nas guitarras de três captadores, um timbre clássico é obtido juntando os captadores da ponte e do meio - timbre este que pouco tem a ver com os timbres individuais desses captadores.
Os captadores podem, ainda, ser de bobina simples (single coil) ou de bobina dupla (humbuckers). Os humbuckers têm duas bobinas conectadas em oposição de fase, mas magnetizadas por ímãs com polos também opostos. Assim, toda interferência externa é cancelada pelas saídas fora de fase das bobinas. Mas como a vibração das cordas é captada em fases opostas nas bobinas (por causa dos ímãs invertidos), sua saída também invertida se soma - o sinal desejado se soma, e as interferências se cancelam. Mas isso tem um preço. nos humbuckers convencionais, as bobinas ficam a pouco mais de um centímetro de distância uma da outra, produzindo cancelamentos em freqüências altas. Isso explica por que os humbuckers sempre têm timbre mais velado que os single coil. Ao invés de ser um defeito, esse timbre velado é apreciado por sua suavidade, adequada ao jazz e a outros tipos de música. E, no caso de ser usada distorção, os humbuckers, além de produzirem um som mais "gordo", ajudam a reduzir o hum exacerbado pelo alto ganho da amplificação.
Na tabela a seguir, temos alguns exemplos de instrumentos "clássicos", com suas características principais:

Tipo de Captador


Tipo de Corpo Humbucker Single Coil
Sólido Gibson Les Paul (Jimmy Page) Fender Stratocaster (Eric Clapton)
Semi-acústico Gibson Lucille (B.B. King) Rickenbacker 330 (George Harrison)
Acústico Ibanez GB20 (George Benson) Gibson ES350 (Chuck Berry, no início) 


O Amplificador de Guitarra
O amplificador de guitarra é a outra metade do instrumento. Se ouvirmos uma reprodução pura e transparente do sinal que vem da guitarra elétrica, logo comprovaremos que lhe falta a riqueza timbral do violão. Cada captador tem um timbre diferente, mas nenhum deles sequer se aproxima da riqueza de harmônicos do instrumento acústico. Além disso, os harmônicos altos são ásperos e pouco musicais.
Há outro aspecto que também precisa ser levado em conta. O violão acústico foi feito para ser ouvido de perto. Numa roda de samba, numa reunião de amigos, num estúdio de gravação, o ouvinte ou o microfone ficam perto do violão, para captar seu som suave e suas sutilezas. A guitarra, principalmente no rock e seus parentes, é tocada para muita gente, com amplificadores despejando muitos decibéis - ou seja, a guitarra nunca é ouvida de perto. Portanto, o som verdadeiramente ouvido da guitarra não é um som chapado, e sim alterado pela acústica do local: reverberação, reflexões, ecos etc.. E a maioria das pessoas não fica exatamente em frente (no eixo) dos alto-falantes do amplificador de guitarra. Alto-falantes esses que, geralmente, são modelos full range de 10" ou 12", incapazes de reproduzir freqüências muito baixas ou muito altas. Fora de eixo e de longe então, poucos agudos (mais de 5kHz) se ouvem.
Isto não quer dizer que os alto-falantes usados para guitarra são mal feitos. Eles, na realidade, são feitos para soar assim. Isto remonta aos anos 40, quando surgiu a guitarra elétrica. Naquela época, não havia tweeters, e a resposta acima de 10kHz era um luxo a que poucos tinham acesso. Por uma questão econômica, os primeiros amplificadores de guitarra eram montados com alto-falantes "econômicos", em caixas acústicas pequenas e abertas por trás. Naquele tempo, e até o meio dos anos 60, não havia retorno de som para os músicos. Como se usava colocar o amp de guitarra na frente do palco, para ser mais bem ouvido (lembre-se, eram amps de cerca de 10 watts), sua caixa era aberta na traseira para que o guitarrista pudesse se ouvir. Resumindo: o som de guitarra nasceu sem graves e sem agudos e, 60 anos depois, permanece assim. E deve permanecer desse jeito para sempre, pois esse é o som de guitarra tal como todos conhecem e amam.

Primeira Aproximação
Agora que entendemos como e porquê o som da guitarra elétrica é esse que conhecemos, vamos ser objetivos: é possível chegar a este som, sem gastar uma fortuna em amplificadores clássicos e modernos, e sem precisar ter uma casa só para guardá-los?
A resposta é: depende da vontade e da paciência.
Podemos, numa primeira aproximação, simular os (d)efeitos de resposta de alto-falantes e de acústica, dando ao som do instrumento características tecnicamente parecidas com a coisa real.

Resposta de Freqüências
Os amplificadores de guitarra, por usarem alto-falantes full range de alta sensibiidade, apresentam resposta de freqüências bastante limitada, tipicamente entre 60Hz e 5kHz. Na figura, vemos as respostas de três amps "clássicos": o Fender Twin Reverb (de 1965), o Fender Deluxe (de 1964), o Vox AC30 (1966) e o Marshall "Plexi" (1968). Em todas elas, nota-se a mesma tendência de cair rapidamente abaixo de 60Hz e também acima de 5kHz. O Vox AC30 de 1966 tem timbre bastante característico devido ao marcante reforço em torno de 250Hz. Todos eles mostram também um notável realce entre 3 e 5kHz.
 
 
Respostas de quatro amps "clássicos": Fender Twin Reverb (Curva vermelha), Fender Deluxe ( curva magenta), o Vox AC30 (azul) e o Marshall "Plexi" (verde).

A primeira mudança a ser feita é o estreitamento radical da resposta de freqüências, eliminando os subgraves e também os agudos, da mesma maneira que faz um alto-falante full range. Para isto, precisamos de filtros poderosos, de preferência com corte de 18dB/oitava para a "limpeza" perfeita.
Para começar, experimente o corte em 80Hz. Esta freqüência corresponde aproximadamente ao Mi2, ou seja, à nota da sexta corda (a mais grossa) solta. Com isso, em princípio a resposta às notas musicais não irá se alterar, mas ruídos muito graves causados pela puxada ou a palhetada na corda irão desaparecer ou, pelo menos, ser bastante atenuados. Experimente aumentar a freqüência de corte para 100Hz, 150Hz etc.: o alto-falante virtual parecerá cada vez menor.
Agora vamos ao corte de agudos. Use também, de preferência, um filtro de 18dB/oitava. Para a primeira tentativa, corte em 5kHz. O som perderá todas aquelas componentes de alta freqüência que provocavam aspereza, e ficará muito mais parecido com o de um amplificador de guitarra, embora ainda muito limpo e plano.
Continuando, vamos agora "entortar" a resposta dentro da banda que sobrou dos cortes. Para isto, pode-se utilizar um equalizador gráfico ou, se possível, um paramétrico. Experimente um reforço de 6dB a 8dB, centralizado em alguma freqüência entre 200Hz e 3,5kHz. O tipo de música, o timbre do instrumento e seu gosto pessoal vão determinar a freqüência ideal. A largura de banda, no caso do paramétrico, pode ser mudada para timbrar mais ou menos o som. Os alto-falantes antigos costumavam apresentar ressonâncias fortes, o que corresponde no equalizador a um reforço de 8dB ou mais, com largura de banda relativamente estreita. Sabendo disto, experimente e escolha os parâmetros a seu gosto. Para jazz, bossa nova etc., recomenda-se uma ressonância suave em uma freqüência mais baixa (menos de 1,5kHz). Para rock pesado, uma freqüência em torno de 2kHz será preferível. Para levadas funkeadas e música pop em geral, freqüências acima de 2,5kHz tornarão o som da guitarra mais brilhante. Ao mudar a ressonância, experimente ao mesmo tempo mudar as freqüências de corte (80Hz e 4kHz). Lembre-se: alto-falantes maiores têm melhor grave e pior agudo, e vice-versa. Para ir além, experimente reforçar em mais de um ponto, por exemplo em 250Hz e 3,5kHz como o Vox.

Agradável Sujeira
Em se tratando de amplificadores de guitarra, som limpo não é qualidade. Um pouco de distorção é sempre desejável. Os mais clássicos e apreciados amps de guitarra são valvulados e têm uma distorção na casa dos 5% a 10% quando soam "limpos". O que acontece é que os valvulados distorcem produzindo harmônicos baixos (no máximo o oitavo), ímpares e pares, que são musicalmente construtivos e passam despercebidos como distorção - mais parecem um realce proposital. Além disso, as válvulas têm uma espécie de compressão, que engorda o som e auxilia o músico na execução.
Mas não vá saturar a entrada de sua mesa tentando obter essa sujeira! As mesas de áudio são 99,99% transistorizadas, e sua distorção contém apenas harmônicos ímpares, sendo muitos de ordem alta (11º, 13º etc.), ásperos e nada musicais. E não existe a tão apreciada compressão da válvula.
Esta distorção de saturação deve ser obtida com um bom pedal ou efeito de rack para guitarra, que produza distorção simulando a válvula. Mesmo que você queira um som "clean" (limpo), um pouquinho de distorção sempre vai bem - não para saturar, apenas para colorir um pouco o timbre.
Se for usar muita distorção, basta ajustar o pedal ou processador para isso. Pode-se também usar um compressor antes do distorcedor, obtendo-se maior sustain mesmo sem muita saturação.
Uma observação importante: a ordem dos fatores altera o produto. A distorção deve vir antes da filtragem e equalização, para ser processada por elas.
Se usar muito ganho, e principalmente se sua guitarra usar captadores single coil, utilize um noise gate entre a guitarra e o primeiro efeito da cadeia, para eliminar os sinais inaproveitáveis. Ajuste o threshold (nível de corte do gate) cuidadosamente, para que o gate corte apenas o ruído, sem prejudicar demais o seu sustain.
Nas figuras, veja a composição da distorção harmônica dos amps Fender Twin Reverb e Vox AC30. Mesmo com os 10% mostrados, o Fender ainda soa clean!

 
 
Fender Twin Reverb: distorção, som clean




Vox AC30: distorção, som clean

Recriando o Ambiente

Com os procedimentos executados até agora, ficamos com um som bastante parecido com o de um amplificador de guitarra. com o ouvido colado ao alto-falante.
É preciso, então, recriar a distância e o ambiente nos quais se ouvem as performances de guitarra.
Para simular a distância, precisamos ouvir algumas reflexões rápidas do som. Isto pode ser obtido aplicando Early Reflections ao sinal, num processador ou software de efeitos. Se este recurso não estiver especificamente presente, use um processador de delay que tenha pelo menos quatro saídas, e ajuste seus tempos de atraso de forma que um tempo não seja múltiplo do outro, formando assim uma seqüência aleatória. Por exemplo: 12 ms, 17 ms, 27 ms e 41 ms devem dar um bom resultado. Se trabalhar em estéreo, e se seu processador tiver esse recurso, espalhe esses sons atrasados de maneira irregular entre a esquerda e a direita. Se você dispuser de mais saídas atrasadas (taps), não faça cerimônia: quanto mais, melhor. Comece com pouco mais de 10 ms e vá até 40 ou 50 ms, e nunca use tempos que sejam múltiplos de outros. Uma idéia rápida é usar números primos, por exemplo, 13, 17, 29, 37, 43, 53 etc..
Agora, o som não está mais chapado: você se colocou a uma distância prudente do amplificador que, aliás, está tocando bem alto e até distorcendo um pouquinho!
Só ficou faltando reverberação. Use-a a gosto - nem muito pouca, que soará irreal num ambiente pretensamente grande, nem demais a ponto de "empastelar" o som.

Na próxima edição, estudaremos alguns processadores e plugins simuladores de amps de guitarra. Até lá!


Sólon do Valle é engenheiro de Áudio, guitarrista nas poucas horas vagas e editor técnico de M&T.


 

 

 
 
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