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Revista Luz & Cena
Lugar da Verdade
Ouça as Crianças
Enrico De Paoli
Publicado em 01/02/2002 - 00h00
Em novembro do ano passado estava num batismo. No meio da cerimônia, Frei Clemente disse uma coisa que me chamou a atenção. "Ouça as crianças. Elas não têm medo porque não têm hábitos. Não conhecem o perigo. Por isso fazem e falam tudo que sentem." Achei isso fantástico e automaticamente veio uma comparação à minha cabeça...
Comparei artistas estabelecidos, antigos, experientes e bem sucedidos, com adultos. E, naturalmente, na minha tese, as crianças seriam os artistas novos, independentes, sem hábitos e vícios, sem preocupação com o mercado, com o diretor da gravadora e o departamento de marketing... apenas focados nas suas próprias artes.
Quanto mais trabalho com os dois tipos, mais aprecio os dois. Justamente pelas suas diferenças e suas transformações. E como tudo, os dois têm vantagens e desvantagens. Ou melhor, características.
Em dezembro, fui convidado para mixar uma faixa do CD da cantora independente Renata Gebara. O projeto já estava pronto e com masterização marcada. A Renata e um dos produtores, o engenheiro Victor Z, baixista da banda carioca Vulgue Tostoi, trouxeram a "faixa-problema" para eu ouvir. Juntos, chegamos à conclusão que a mix estava politicamente correta, mas, por motivos não mensuráveis, não emocionava. Na minha opinião, a música sonicamente não contava uma história. Não transportava o ouvinte de um lugar a outro, emocionalmente. Não mudava seu estado de espírito. Três dias depois, estávamos tentando uma nova versão da mix.
Porque a comparação com o que o Frei disse ? Porque "adultos", aqui no Brasil, têm o hábito fazer um projeto com a mesma equipe... mesma banda... mesmos músicos... mesmo estúdio, produtor e finalmente, mesmo engenheiro. Cansei de ser chamado pra fazer projetos e por não ter tempo de me envolver no projeto inteiro, acabei por não fazer uma ou outra música. Cansei de ouvir a frase "Mas mixar só uma música? Mas assim o projeto vai ter personalidade não definida..." Minha opinião? QUE BESTEIRA... A personalidade do projeto é o artista. O resto é sonoridade, vocabulário, idéias, acabamento. É como perfume. O mesmo perfume jamais terá o mesmo cheiro em duas pessoas diferentes. O cheiro do perfume vai interagir com o cheiro natural da pessoa, resultando em um cheiro completamente novo, diferente. É como uma mix... Minhas mixagens em discos de artistas diferentes sempre soam completamente diferentes... são outras músicas, arranjos, personalidades, cheiros, proporcionando um resultado sempre diferente.
Se vocês forem ler a ficha técnica do novo CD do Michael Jackson (Invincible), vão notar que existem músicas mixadas por três ou quatro engenheiros distintos... que loucura! A primeira pergunta que vem à mente é: como será que coube tanta gente na frente da mesa? Mas não foi isso não... Cada um daqueles engenheiros mixou em dias diferentes... estúdios diferentes, e com idéias e perspectivas completamente diferentes. No fim, o produtor e artista chegaram à conclusão que preferiam a introdução de um... o refrão do outro, o verso do outro... etc. E fizeram a edição das partes das mixes em uma só. Não estamos falando de vários engenheiros em um mesmo CD... mais radical ainda... estamos falando da MESMA MÚSICA! E nem por isso, a faixa perdeu a personalidade. Porque o artista é o mesmo. O criador. O centro. A personalidade. E acima de tudo, sem medo, como as crianças.


Enrico De Paoli é engenheiro de estúdio e de PA. Seus créditos incluem Ray Charles, Al Jarreau, Djavan e outros. Contato nos Estados Unidos: www.HitMixers.com. No Brasil: enrico@rio.com.br.

 
 
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